Pseudociências e nacionalismo, mistura perigosa

Apocalipse Now
9 jan 2019
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Uma nau voadora da mitologia indiana
Uma nau voadora da mitologia indiana

As manifestações de cientistas indianos contra o processo de “normalização” de doutrinas e ideias pseudocientíficas, em conferências dedicadas à ciência realizadas no país, já foi notícia na Nature e na BBC. Ano passado, artigo publicado no site Undark já chamava atenção para esse fenômeno.

Todos os relatos destacam o caráter nacionalista do movimento pseudocientífico: entre as ideias promovidas estão as de que os antigos indianos criaram a manipulação genética e as máquinas voadoras.

A ideia de que as descrições de palácios voadores encontradas em antigos textos indianos seriam referência a máquinas reais também é esposada por Erich von Däniken, mas o papa dos deuses astronautas prefere atribuí-las a alienígenas, não a gênios científicos da Ásia pré-histórica.

Von Däniken e os nacionalistas, no entanto, compartilham de uma mesma metodologia – a interpretação enviesada e descontextualizada da tradição mitológica. Tratar as carruagens e castelos voadores, que são citados nos Vedas e épicos indianos, como prova de tecnologia avançada faz tanto sentido quanto tratar a presença de Pégaso, nos mitos gregos, como prova de que os antigos povos da Hélade dominavam a engenharia genética, a ponto de hibridizar cavalos e águias – ou, na linha dos deuses astronautas, que os gregos do passado interpretavam as motocicletas a jato dos alienígenas da Astronave Olimpo como equinos alados.

De forma menos fantástica, o mesmo vício aparece na formulação da tese da “Atena Negra” ou do “Legado Roubado” – a ideia de que toda a base da civilização ocidental (entendida como a filosofia e a matemática dos gregos antigos) foi “roubada” do Egito, que era povoado predominantemente por negros. Ambas são proposições pseudocientíficas.

A ideia do Egito como “verdadeiro berço” da cultura europeia depende de dois erros cruciais. O primeiro é uma leitura muito literal de textos antigos como a “História” de Heródoto ou o relato da queda de Atlântida feito por Platão. Quando digo literal, quero dizer mesmo fundamentalista: acreditar que o legislador ateniense Sólon foi instruído sobre a história da Grécia por sacerdotes egípcios, só porque Platão usa isso como dispositivo em seus diálogos, equivale a acreditar na Torre de Babel ou no Dilúvio Universal, só porque está na Bíblia.

O segundo erro, relacionado ao primeiro, é levar a sério toda uma mitologia sobre a sabedoria do Antigo Egito construída, ironicamente, na própria Europa, nos séculos em que os hieróglifos eram indecifráveis e a imaginação dos viajantes era livre para atribuir qualquer conteúdo às inscrições, inegavelmente impressionantes.

Inúmeros mitos, que povoam de rituais maçônicos a romances esotéricos, vieram daí. Um romance francês de 1731, Séthos, descreve as pirâmides como locais de iniciação mística. O egiptólogo alemão Erik Hornung sugere, em seu livro sobre a visão ocidental do esoterismo egípcio, Das Esoteriche Aegypten, que os relatos de que Aristóteles teria se servido da Grande Biblioteca de Alexandria para fundar a filosofia grega merecem tanto crédito quanto a história de que os sobrinhos do Pato Donald redescobriram a biblioteca, intacta.

Quanto à cor da pele dos antigos egípcios, a questão, além de ser, do ponto de vista social, anacrônica – qual a relevância das categorias raciais atuais para uma civilização de 3 mil anos atrás? – é também, geneticamente, muito mais complexa do que uma simples divisão entre “brancos” e “negros”, como mostra este estudo.

Outras fantasias afrocêntricas incluem a construção do monumento de Stonehenge, na Inglaterra, por negros pré-históricos. O curioso é que essa concepção, em particular, entra em choque com outra linha de pseudo-história, a do nacionalismo celta. Esse revisionismo histórico pinta os povos celtas do passado distante como uma raça brava, pura e sábia, conectada à natureza e moralmente superior aos romanos e anglo-saxões.

Esta é uma visão fácil de encontrar em livros de fantasia histórica, mas que também tem raízes na interpretação enviesada de relatos e achados arqueológicos, principalmente tentando mostrar que a Irlanda teria desenvolvido uma civilização avançada antes da chegada dos missionários cristãos (e dos invasores ingleses).

Nem mesmo o Brasil escapou dessa onda: mitos de cidades perdidas no interior do país foram usados, no século 19, para tentar mostrar que os brasileiros, no fim, não dependeram de Portugal para receber cultura e civilização, mas tiveram uma ligação independente com a antiga cultura greco-romana.

Todos esses exemplos têm algo em comum – vêm de povos ou nações que se veem, ou são vistos, como alvo de opressão. Nesse contexto, alguns intelectuais cedem à tentação de forjar um passado glorioso que possa alimentar a autoestima e aumentar a coesão entre os oprimidos. Seria uma forma de placebo ideológico, e que assim como os placebos na área de saúde, talvez possa ser defendido pelo argumento de “se faz bem, que mal que tem?”

Essa defesa falha nos dois casos, da saúde e da história, no entanto, e pelos mesmos motivos: placebos não são confiáveis, são eticamente inaceitáveis, porque se baseiam em mentira, e quem se fia neles corre um sério risco de tomar decisões erradas ou, até mesmo, desastrosas – seja em saúde ou, no caso da pseudo-história, na ciência e política.

Não custa lembrar que a falsificação da história e da arqueologia para atender a objetivos de orgulho étnico ou fervor nacionalista foi uma estratégia abraçada com entusiasmo na Alemanha nazista, quando o ideólogo (e genocida) Heinrich Himmler construiu todo um passado fictício de glória para as tribos germânicas da pré-história, incluindo a reinterpretação de uma formação natural de arenito, a Externsteine, como sítio arqueológico, e a construção de um círculo megalítico comemorativo em 1935, o Sachsenhain, chamado por um jornalista americano de “o mais completo trabalho de substituição da pré-história já executado”.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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