MMS: a tal “Solução Mineral Milagrosa” é perigosa e inútil

14 mai 2019
Autor
Garrafa de veneno

Em outubro de 2015, um certo Louis Daniel Smith, da cidade de Spokane, nos Estados Unidos, foi condenado a quatro anos de cadeia e mais três de liberdade condicional por fraude, conspiração criminosa e contrabando. Smith chefiava uma operação online que vendia MMS – “Solução Mineral Milagrosa” – um produto corrosivo, à base de cloro, tóxico, mas que, segundo alegações do criminoso, citadas em nota do Departamento de Justiça do governo americano, seria capaz de curar “câncer, aids, malária, hepatite (...) asma e o resfriado comum”. Autismo também é comumente citado por proponentes dessa “terapia”.

A mesma MMS vem preocupando as autoridades brasileiras há, pelo menos, onze meses. Em junho do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu comunicado incluindo a MMS numa lista de produtos clandestinos, cuja venda estava proibida. Mais recentemente, no fim de abril, a agência atuou para retira da internet anúncios do produto. 

A despeito da ação da agência reguladora, ainda é fácil encontrar ofertas de MMS na internet brasileira, além de canais nacionais do YouTube, com milhares de seguidores, que promovem a falsa panaceia em termos virtualmente idênticos aos que levaram Louis Daniel Smith à cadeia.

A Anvisa aponta que os anúncios continham “alegação de propriedades terapêuticas para uma substância química que não tem qualquer comprovação de segurança para uso em humanos”, e acrescenta que o dióxido de cloro, produto final da preparação da MMS, “é uma substância utilizada na formulação de produtos de limpeza, como alvejantes e tratamento de água. (...) O dióxido de cloro não tem aprovação como medicamento em nenhum lugar do mundo. A sua ingestão traz riscos imediatos e a longo prazo para os pacientes, principalmente às crianças”.

Diversas agências reguladoras de outras partes do mundo já emitiram advertências semelhantes. Nos EUA, a FDA divulgou, em 2010, nota exortando as pessoas que haviam comprado MMS a “interromper o uso imediatamente e jogar o produto fora”, por tratar-se de substância tóxica e perigosa.  

“A FDA recebeu diversos informes de danos à saúde em consumidores que usaram o produto, incluindo náusea severa, vômito e risco de vida causado por pressão baixa, consequência da desidratação”. Alertas semelhantes foram emitidos, ao longo dos últimos anos, pelos governos do Reino Unido e do Canadá.

Conspiração

Alguns promotores do uso da MMS usam os alertas dos órgãos reguladores como argumento a favor do produto, insinuando (ou afirmando) que se trata de uma grande conspiração para manter a “cura fácil e barata de todas as doenças” fora do alcance do “povo”. 

Essa objeção não faz sentido em diversos níveis. O primeiro é que um governante capaz de produzir a “cura fácil e barata de todas as doenças” teria a chave da popularidade eterna nas mãos, e não ganharia nada escondendo-a: basta ver, por exemplo, como foi intensa a movimentação de políticos brasileiros a favor da falsa – tragicamente falsa – promessa da cura “fácil e barata” do câncer pela “fosfoetanolamina sintética”. 

Outro nível é o estritamente científico – a ideia de que um alvejante à base de cloro (não muito diferente de água sanitária) pode curar todo tipo de doença não tem nenhuma base física, química ou biológica.

O criador da MMS, Jim Humble, alega que o produto é um “oxidante que mata patógenos e destrói venenos”, o que abre caminho para que o corpo cure a si mesmo. Ele é cuidadoso o suficiente para dizer que seu produto “não cura nada”, apenas auxilia, uma cantilena manjada e conhecida por quem acompanha a cena da chamada "medicina integrativa".

A proposta de que "oxidação" resolve, ou ajuda a resolver, qualquer problema de saúde segue uma lógica muito parecida com a da ozonioterapia, outra bobagem. E a ideia de que engolir um potente oxidante (algo que, no ambiente, mata micro-organismos e destrói certos contaminantes) vai, de algum modo, purificar o corpo é análoga à de que beber detergente (que, no ambiente, dissolve gorduras) vai fazer emagrecer. É uma conexão de caráter supersticioso, típica do pensamento mágico.

Testemunho não é prova

Humble diz que teve sua inspiração em 1996, na América do Sul, e que desde então viu sua água sanitária sagrada (ele considera a preparação da MMS um sacramento da igreja que fundou, “Genesis II”) “restaurar a saúde, total ou parcial” de pacientes com “esclerose múltipla, Parkinson, Alzheimer, aids, malária, autismo, infecções de todo o tipo, colesterol alto, refluxo, doenças do fígado ou dos rins, dores, alergias, infecções urinárias, problemas digestivos, hipertensão, obesidade, parasitas, tumores e cistos, depressão, sinusite, problemas nos olhos, infecções do ouvido, dengue, problemas de pele, problemas odontológicos, problemas da próstata (PSA alto), disfunção erétil, e a lista continua”. 

Esta lista, por si só, já deveria acender luzes de alerta. É, para dizer o mínimo, extremamente improvável que um remédio único possa atuar em tantas condições, com tantas causas diferentes. É sinal de que há algo errado. Mas, enfim,  no que ele se baseia para construir essa lista, tão impressionante? Testemunhos. E aí fica bem claro o que está errado.

Já escrevi em mais detalhes sobre isso em outro artigo, mas dá para resumir o problema do uso de depoimentos pessoais como evidência de que tratamentos funcionam em uma frase: quem não sara não liga para agradecer. Ou, numa formulação mais radical – os mortos não falam. Todo curandeiro, seja ele sincero ou charlatão, recebe retorno predominantemente positivo. É possível encontrar material online alegando que a Cruz Vermelha realizou testes bem-sucedidos com o produto na África, mas isso é uma mentira.

Precedente

Um caso exemplar é o da epidemia de febre amarela que atingiu a cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, em 1793. Boa parte da população fugiu em pânico, à medida que a doença de espalhava, mas um pequeno grupo de profissionais da saúde permaneceu na cidade para atender aos doentes. Entre esses abnegados estava Benjamin Rush (1745-1813), um dos signatários da Declaração de Independência dos EUA e, na época, o médico mais respeitado do país.

Rush dedicou-se a procurar formas de tratar a doença, e acabou encontrando um tratado que recomendava o uso de violentos purgantes para limpar as vísceras dos pacientes dos "miasmas pútridos" que, supunha-se, causavam a febre.

Usando como “voluntário” um paciente que parecia às portas da morte, Rush aplicou o purgante mais forte então disponível nos Estados Unidos: uma mistura de raiz de jalapão (Ipomoea purga) com um pó químico chamado calomel, que contém o metal mercúrio.

O moribundo reviveu, e Rush decidiu aplicar sua nova cura a outros pacientes, associando-a a sangrias extensas. Os sobreviventes passaram a dar testemunhos entusiásticos a respeito do remédio de Rush, e ele se tornou um herói popular. 

O problema dessa história é que o tratamento de Benjamin Rush era – hoje sabemos – uma atrocidade: o mercúrio é tóxico, sangrias enfraquecem o paciente, purgativos e diuréticos desidratam. Ainda assim, o médico emergiu da epidemia de 1793 como um santo, o adorado salvador de uma legião de pacientes agradecidos.

A verdade é que os pacientes "salvos" por ele provavelmente já estavam prestes a se recuperar sozinhos – mesmo o "moribundo" original – e sobreviveram apesar do tratamento, não graças a ele. Dos que Rush não salvou, muitos talvez tivessem sobrevivido se deixados por conta própria. Mas os mortos não estavam lá para reclamar.

Sejam quais forem as motivações sociais, psicológicas, financeiras, etc., por trás da MMS, fica o fato de que ela é com certeza inútil e, muito provavelmente, perigosa – talvez letal. A única desculpa de quem a promove ou defende é falta de informação, e mesmo essa é uma desculpa tênue, já que existem diversas fontes corretas e confiáveis a respeito em português: além do alerta da Anvisa, por exemplo, há boas reportagens aqui e aqui.

Carlos Orsi é jornalista é editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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