
Numa das minhas colunas recentes, prometi voltar a um já velho argumento criacionista. Hoje, cumpro a promessa. Assim como os outros argumentos criacionistas, este também já foi refutado inúmeras vezes. Mas, como um zumbi (ou walker, se você for fã de The Walking Dead), segue perambulando por aí, mesmo depois de morto. Segundo esse argumento, a evolução é incapaz de gerar nova informação genética e, portanto, não pode ser responsável pelo surgimento da biodiversidade, já que espécies diferentes são construídas com base em composições genéticas diferentes. Logo, design inteligente. Como veremos, não é bem assim.
O primeiro problema com esse argumento é que criacionistas geralmente são muito vagos quanto ao que entendem por “informação genética”. Se fazem isso por ignorância ou como dispositivo retórico, não sei, mas a imprecisão e a ambiguidade ajudam bastante o argumento a soar mais poderoso do que realmente é. Num primeiro momento, podemos pensar em “informação” como o significado comunicado por um sistema de símbolos. Por exemplo, a linguagem. Ao ler esse texto, você o compreende porque você sabe o que sequências de letras específicas, as palavras, significam. Mas isso é, em grande parte, uma convenção. O significado é atribuído, não inevitável.
Então, nesse sentido, informação e significado são essencialmente a mesma coisa. Tudo bem, você pode até cogitar se processos naturais, como deriva genética e seleção natural, são capazes de gerar informação nesse sentido. Porém, a informação codificada no material genético dos seres vivos não é desse tipo. Alternativamente, podemos pensar em informação genética como referente os estados físicos específicos das biomoléculas (geralmente DNA ou RNA) que determinam propriedades dos organismos vivos. Embora não seja uma definição perfeita, nem a única possível, certamente essa perspectiva está muito mais próxima da realidade biológica do que a discutida no parágrafo anterior.
Perceba que a informação genética, portanto, não é como uma linguagem natural ou de programação. Na linguagem natural, conjuntos de símbolos têm significados atribuídos, ou seja, esses símbolos representam alguma coisa. Mas não se pode dizer o mesmo de uma sequência de DNA. As bases nitrogenadas (A, T, C, G) são moléculas, não letras ou palavras. Trechos específicos de uma molécula de DNA, como um gene, têm uma estrutura física e participam de processos que geram outras moléculas, que então executam suas funções. Sendo assim, a evolução é plenamente capaz de gerar nova “informação” genética.
O DNA (sigla em inglês para “ácido desoxirribonucleico”) é composto por duas cadeias de nucleotídeos organizadas em uma estrutura de dupla hélice, onde cada nucleotídeo contém um açúcar (desoxirribose), um grupo fosfato e uma base nitrogenada (adenina – A, timina – T, citosina – C e guanina – G). As bases emparelham-se de forma específica (A com T, C com G), garantindo a estabilidade da molécula e permitindo sua replicação precisa (embora não perfeita; afinal, mutações existem!). Dizemos que o DNA contém a informação para produzir proteínas. Como isso é possível? Graças aos códons. Calma, não é difícil.
Os códons são sequências de três bases nitrogenadas no DNA (ou no RNA mensageiro) que codificam aminoácidos, os blocos de construção das proteínas. Cada trinca de bases é um códon e corresponde a um, e somente um, aminoácido específico ou a um sinal de início ou término da tradução. Por exemplo, o códon ATG codifica o aminoácido metionina e também sinaliza o início da síntese proteica. Um mesmo aminoácido pode estar relacionado a diferentes códons, mas um códon em particular não pode, geralmente, estar relacionado a mais de um aminoácido; estamos falando de biologia, então sempre há variação. Ao conjunto de regras de encadeamento de aminoácidos no processo de produção de proteínas damos o nome de código genético. Por favor, não confunda gene/genoma/sequência com código genético. Não são a mesma coisa, como já expliquei aqui!
Cuidado na intepretação. O códon ATG não significa metionina, mas sua estrutura molecular é tal que, no processo biológico de produção de uma proteína, o ATG implica em interações entre moléculas (passando pelo RNA) que levam ao recrutamento do aminoácido metionina. É nesse sentido que dizemos que ATG codifica o aminoácido metionina. “Codifica”, não “significa”. O fato de existirem códigos genéticos alternativos ao código genético padrão só reforça esse ponto: não há um significado intrínseco, nem qualquer significado semântico atribuído; no fim, é tudo bioquímica, como as moléculas interagem, quais processos moleculares ocorrem, etc. Tendo isso em mente, fica fácil entender como nova informação genética pode ser gerada por meio do processo de mutação.
Considere a seguinte sequência de aminoácidos, que podemos imaginar como sendo parte de um gene.
ACT | CCT | GAG
Os códons ACT, CCT e GAG estão relacionados aos aminoácidos treonina, prolina e ácido glutâmico, respectivamente. Ou seja, no processo de produção de uma proteína específica, codificada pela informação genética armazenada em um gene, esse trecho em particular implica no recrutamento dos aminoácidos mencionados (e nessa sequência específica). Porém, se houver uma mutação que troca A por T no códon GAG, transformando-o em GTG, agora o aminoácido valina é recrutado no lugar do ácido glutâmico. Ou seja, a informação genética foi alterada. E nesse caso resulta em uma alteração que se reflete na estrutura primária da proteína (isto é, a sequência de aminoácidos concatenados) e pode, também, refletir-se na estrutura tridimensional da proteína. O arranjo em três dimensões de uma proteína, ou seja, sua conformação, é muito importante no desempenho de alguma função.
Fica demonstrado, portanto, que é possível que a evolução gere nova informação genética através do processo de mutação. A combinação com outros processos é responsável por gerar novas funções. Isso ocorre, por exemplo, quando um gene inteiro é duplicado. Enquanto uma das cópias codifica a produção da proteína original, a outra cópia pode acumular mutações e, no fim, levar a uma proteína resultante capaz de realizar outras funções. Em biologia evolutiva isso é conhecido como neo-funcionalização. Existem muitos estudos que documentam esse tipo de processo (e outros análogos), como você pode conferir clicando aqui.
O argumento criacionista abordado aqui se reduz, no fim, à falácia do equívoco, que ocorre quando uma expressão é usada com mais de um significado dentro do mesmo argumento, levando a uma conclusão enganosa. Fica mais fácil de ver isso quando escrevemos o argumento na forma de um silogismo:
Premissa 1: a evolução de novas adaptações requer a origem de nova informação genética
Premissa 2: não existem mecanismos naturais capazes de produzir nova informação genética
Conclusão: a evolução não pode produzir novas adaptações.
O argumento é falacioso devido aos diferentes significados dados à palavra “informação” nas premissas 1 e 2. Na premissa 1, informação genética quer dizer essencialmente o que postulei nos parágrafos anteriores — estados físicos específicos de biomoléculas. Na premissa 2, contudo, os criacionistas geralmente não invocam o mesmo sentido, mas tratam “informação” como “significado transmitido por um sistema de símbolos”. A conclusão, portanto, é falaciosa. Criacionistas reverberando falácias? Nada de novo sob o Sol.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade