Um adeus à Rainha da Macroevolução

Artigo
19 fev 2025
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Elisabeth Vrba, sobre foto de Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported

 

No momento em que comecei a escrever esse artigo o mundo inteiro celebrava o Darwin Day, marcado pelo aniversário de Charles R. Darwin. Ironicamente, o que me leva a escrever não são as boas novas de um nascimento, mas a triste notícia do fim de uma vida. Em 5 de fevereiro 2025 faleceu a paleontóloga Elisabeth S. Vrba, uma das mais brilhantes mentes da paleobiologia e teoria evolutiva do último século. Embora não seja aclamada como outros nomes, Vrba produziu um trabalho com implicações profundas sobre como olhamos para evolução dos seres vivos, bem como as interações entre os organismos e seu ambiente.

Elisabeth Vrba nasceu no dia 27 de maio de 1942 em Hamburgo, Alemanha, mas depois que seu pai morreu (quando ela tinha 2 anos, apenas) mudou-se com a mãe para a Namíbia. Em 1965, graduou-se em Zoologia e Estatística Matemática Universidade da Cidade do Cabo. Concluiu o doutorado na mesma universidade em 1974, mas um ano antes já havia assumido o cargo de Chefe do Departamento de Paleontologia e Paleoantropologia, Museu Transvaal, Pretória. Em 1986, Elisabeth migrou para os Estados Unidos, onde assumiu a posição de professora no Departamento de Geologia e Geofísica da Universidade de Yale. Quando faleceu, era professora emérita da mesma universidade.

A vida e carreira de Elisabeth cruzaram as de Niles Eldredge e Stephen Jay Gould nos anos 1980. De um ponto de vista mais pessoal, essas são talvez as três maiores influências de minha carreira na paleontologia. Em seu livro recente (com Bruce Liberman), “Macroevolutionaries”, Niles relembrou a dedicatória que Gould escreveu em sua última obra, “The Structure of Evolutionary Theory”:

 

Para Niles Eldredge e Elisabeth Vrba

Que possamos sempre ser os Três Mosqueteiros

Prevalecendo com elegância

Desde nosso início frenético e desorganizado em Dijon

Até nossa recepção não satânica e feliz no Dia do Juízo Final

Todos por um e um por todos

 

Os três mosqueteiros da macroevolução deixaram sua marca indelével na biologia evolutiva. Já falei aqui do trabalho de Niles, e muito do trabalho de Gould. Mas nunca abordei diretamente a obra de Vrba. Falha minha. Em um de seus trabalhos mais importantes, Vrba (1980) argumenta que a noção de Equilíbrios Pontuados, publicada em 1972 pelos outros dois mosqueteiros, implica que o início da diversificação ou origem de novas espécies é, em grande parte, ditada por mudanças no ambiente. Se a mudança morfológica geralmente ocorre associada a eventos de surgimento de novas espécies, que outra causa poderia explicar esse padrão a não ser um “empurrão” dado pela mudança ambiental? Como ela escreveu mais tarde (Vrba, 1993), isso leva a uma possibilidade radical:

“Que todos (ou quase todos) os [eventos de] especiação e extinção são iniciados por uma mudança ambiental física, com a necessária consequência de que todos os eventos macroevolutivos para os mais variados grupos de organismos estão concentrados em uma série de pulsos”.

Essa é a sua “Turnover-Pulse Hypothesis”. A não ser que o ambiente exerça uma pressão sobre as espécies, múltiplas linhagens tendem a permanecer em estase morfológica. E quando mudam, isso acontece de modo quase perfeitamente sincronizado (por isso em um “pulso”) em múltiplas linhagens. Essa ideia provocou debates e teve profunda influência sobre muitas pessoas, inclusive o próprio Niles Eldredge. O modelo do “sloshing bucket”, que já discutimos aqui, é uma aplicação direta dessa perspectiva trazida por Vrba.

O artigo de 1980 também foi relevante ao propor uma hipótese para explicar por que organismos especialistas (aqueles que possuem adaptações específicas para explorar um ambiente ou recurso limitado) são mais numerosos em espécies do que generalistas (aqueles que conseguem utilizar uma ampla variedade de recursos e habitats). De acordo com sua "Hipótese do Uso de Recursos" (RUH), as mudanças físicas no ambiente desempenham um papel fundamental na fragmentação das distribuições geográficas das espécies, promovendo assim a origem de novas espécies.

Segundo a RUH, generalistas são menos sensíveis à escassez de recursos, à seleção direcional intensa e ao isolamento geográfico à medida que os ambientes mudam. Portanto, espécies generalistas apresentam taxas menores de especiação e extinção. Em contraste, especialistas exibem padrões opostos em todos esses aspectos e tendem a ter taxas mais altas de especiação e extinção.

A RUH de Vrba continua influente e tem sido apoiada por evidências empíricas (ver, por exemplo, Gamboa et al., 2024). O uso da ecologia para explicar padrões observados no registro fóssil tornou-se um tema recorrente na carreira de Vrba.

Em 1982, Gould e Vrba introduziram um novo termo na ciência da forma: exaptação. O fenômeno da adaptação geralmente é definido e reconhecido por dois critérios distintos, mas que frequentemente são confundidos um com o outro: a gênese histórica (características moldadas pela seleção natural para sua função atual) e a utilidade presente (características que aumentam a aptidão atualmente, independentemente de sua origem). Não raro, biólogos evolutivos não percebem a possível confusão entre essas definições, pois tendemos a considerar a seleção natural como o mecanismo evolutivo predominante (para muitos, quase exclusivo, quando o assunto são adaptações), levando-nos a enxergar o processo histórico e o resultado atual como uma única coisa.

E é aí que entram as exaptações: características que atualmente aumentam a aptidão de um organismo, mas que não foram originalmente moldadas pela seleção natural para sua função atual. Por vezes, uma característica pode surgir, não ser adaptativa, mas acabar se espalhando pela população. Se um dia ela for cooptada para uma nova função, um biólogo pode confundir sua função atual com a explicação causal para sua origem. Muitas das pessoas que criticam a utilidade do termo exaptação esquecem de levar em conta esse detalhe. Em “Macroevolutionaries”, Eldredge conta um pouco sobre a origem da ideia de exaptação:

“Uma das ideias mais empolgantes que surgiu do artigo de Steve [Gould] e Richard [Lewontin] foi outro artigo publicado três anos depois por Steve e Elisabeth Vrba, intitulado 'Exaptation— a Missing Term in the Science of Form', que introduziu esse termo. As exaptações foram algo sugerido no artigo de Steve e Richard, mencionado de forma breve em um parágrafo escasso onde não foram plenamente definidas. Elisabeth imediatamente percebeu a importância mais ampla desse parágrafo, que os autores haviam deixado para esclarecer mais tarde (ou talvez nunca)”.

A intenção de expandir sobre esse ponto crucial, portanto, foi de Vrba. Ainda segundo Niles, o intelecto de Vrba não deixou escapar o fato de que:

“Elisabeth percebeu que, à medida que ocorriam transformações, características originalmente submetidas à seleção natural para uma determinada função poderiam mais tarde passar a ser selecionadas para outra. Ou poderiam evoluir de forma neutra e, posteriormente, serem cooptadas para uma nova função. Simplesmente rotular essas características como ‘adaptações’ deixaria de capturar aspectos fundamentais desse processo”.

Devido à influência de Gould, geralmente lembramos das exaptações como uma ideia formalizada por ele. O fato de Gould ser o primeiro autor desse artigo também ajuda. Contudo, conforme nota de rodapé no artigo esclarece: "Uma produção em igual tempo; a ordem de autoria foi determinada por um cara ou coroa transoceânico."

Em 1983, Elisabeth explorou mais as implicações de seu trabalho de 1980. Em artigo publicado na Science, ela discute a “effect macroevolution”. De acordo com Vrba, tendências evolutivas de longo prazo (i.e., padrões vistos como direcionais, depois de ocorridos), são tradicionalmente interpretadas como resultado da seleção natural e, por isso, interpretadas como necessariamente adaptativas. Alternativamente, contudo, as tendências evolutivas podem ser efeitos não selecionados de características e processos ocorrendo dentro das espécies, que Vrba chamou de “effect hypothesis”, ou a hipótese do efeito.

Segundo Vrba, as adaptações dos organismos que foram selecionadas para a aptidão imediata também podem, incidentalmente, influenciar diferentes taxas de especiação e extinção. A depender da relação específica entre as taxas de surgimento e extinção de espécies dentro de um grupo, essas consequências acidentais podem acabar engendrando tendências evolutivas observadas no registro fóssil. A causalidade entre diferentes níveis de organização da hierarquia biológica também seria um tema recorrente na obra de Vrba, como veremos a seguir.

Em 1984, Vrba & Eldredge argumentaram que a organização hierárquica da vida não era levada tão a sério quanto deveria no Darwinismo tradicional. Da perspectiva deles, se a biologia evolutiva desejava tornar-se mais completa, era preciso integrar as hierarquias nas perspectivas teóricas. De acordo com Vrba & Eldredge, a hierarquia genealógica é uma organização em níveis ascendentes (genes, genomas, organismos, populações, espécies, etc.), com fenômenos comuns a todos eles: entidades como genes, organismos e espécies são indivíduos; têm caracteres agregados e emergentes; variam por introdução de novidades e por taxas diferenciais de nascimento e morte. Quanto às causas da variação, elas podem vir de influência ascendente de níveis inferiores (de baixo para cima), descendente de níveis superiores (de cima para baixo) ou no próprio nível focal. Em resumo, propunham que a causalidade entre níveis seja central na evolução.

Outra contribuição importante de Elisabeth Vrba foi a sua perspicácia em enfatizar a diferença entre sorting (triagem) e seleção. Em seu artigo “O que é seleção de espécies?” (Vrba, 1984), afirma:

“Há muito tempo se reconhece que, teoricamente, existem várias causas possíveis para a triagem entre fenótipos e genótipos. A seleção é apenas uma das possíveis causas. Por exemplo, se não houver uma relação determinística entre características e sucesso reprodutivo, não se fala em seleção, mas em deriva genética aleatória”.

Ou seja, todo processo de seleção é também um processo de triagem, mas nem toda triagem é seleção. Se isso é verdade no nível do organismo, talvez também seja no nível de espécie, argumentou Vrba. Posteriormente, Vrba e Gould (1986) escreveram o artigo “A expansão hierárquica da triagem e da seleção: triagem e seleção não podem ser equiparadas”, na tentativa de deixar clara a diferença entre as duas coisas; note que, na escala de espécies, usamos a palavra “triagem” (sorting), não deriva genética, quando precisamos enfatizar um processo que não envolve adaptações.

Falando como alguém da área, devo dizer que o artigo deveria ser mais lido, pois claramente se continua a cometer os mesmos equívocos quase 40 anos depois; aliás, há quem traduza sorting como seleção, o que ignora completamente a distinção entre as duas coisas. Esse ponto aparentemente semântico, contudo, era parte de uma ambição maior, a de demonstrar como a “hierarquia pode esclarecer uma série de questões evolutivas, tanto com base na sua estrutura lógica quanto nos caminhos históricos de sua construção — pois a hierarquia é uma propriedade da natureza, não apenas um esquema conceitual de organização”.

Um dos meus livros favoritos é “Eternal Ephemera” (Eldredge, 2015). É uma narrativa histórica e biográfica sobre paleontologia, evolução, Darwin, e os Três Mosqueteiros. Foi por meio da leitura desse livro que pude ter melhor ideia da grandeza de Elisabeth Vrba. Ecoo os elogios de Niles:

“Ninguém contribuiu mais... para teoria macroevolutiva nas décadas de 1980 e 1990 do que a paleontóloga Elisabeth S. Vrba. Suas contribuições foram numerosas, variadas e significativas...”

Adeus, rainha da Macroevolução. E obrigado por tudo!

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

SAIBA MAIS

Vrba, Elisabeth S. 1980. Evolution, species and fossils: How does life evolve? South African Journal of Science 76:61–84.

Gould, S. J., & Vrba, E. S. 1982. Exaptation—a missing term in the science of form. Paleobiology8(1), 4-15.

Vrba, E. S. 1983. Macroevolutionary trends: new perspectives on the roles of adaptation and incidental effect. Science221(4608), 387-389.

Vrba, Elisabeth S. 1984. What is species selection? Systematic Zoology 33:318–328.

Vrba, Elisabeth S., and Niles Eldredge. 1984. Individuals, hierarchies and processes: Towards a more complete evolutionary theory. Paleobiology 10:146–171.

Vrba, Elisabeth S., and Stephen Jay Gould. 1986. The hierarchical expansion of sorting and selection: Sorting and selection cannot be equated. Paleobiology 12:217–228.

Eldredge, N. 2015. Eternal ephemera: Adaptation and the origin of species from the nineteenth century through punctuated equilibria and beyond. Columbia University Press.

Lieberman, B., & Eldredge, N. (2024). Macroevolutionaries: Reflections on Natural History, Paleontology, and Stephen Jay Gould. Columbia University Press.

Gamboa, S., Galván, S., & Varela, S. (2024). Vrba was right: Historical climate fragmentation, and not current climate, explains mammal biogeography. Global Change Biology30(5), e17339.

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