Auriculoterapia: “evidências” que desmancham no ar

Artigo
17 fev 2025
Imagem
orelha humana

 

Um ano após o editor da RQC, Carlos Orsi, publicar o artigo “Prefeitura de SP desperdiça verbas gabando-se de desperdício de verbas”, no qual destacou a ilogicidade do governo municipal ao se vangloriar por oferecer, no sistema municipal de saúde, 20 das 29 práticas integrativas e complementares (PICs) e que, no primeiro semestre de 2023, ocorreram 192.403 sessões de auriculoterapia — a estrela do nosso artigo –, somos confrontados com mais um exemplo escancarado do entrelaçamento entre setor público e pseudociências.

No dia 27 de janeiro, o Ministério da Saúde publicou, em seu Instagram, a seguinte chamada:

“Estão abertas as inscrições para o curso Auriculoterapia na Atenção Primária à Saúde. O curso será ofertado na modalidade semipresencial, com aulas teóricas online e práticas presenciais em polos regionais. Com 80 horas de duração, ele capacitará profissionais da saúde para aplicar essa prática integrativa no SUS, ampliando as possibilidades de cuidado. As inscrições são destinadas a gestores e profissionais de saúde de nível superior e em atividade na atenção primária à saúde”.

Como o nome sugere, a atenção primária é o primeiro nível de assistência em saúde.

Isso, por si só, já seria motivo suficiente para inúmeras críticas, tanto ao governo que, apesar de ser melhor que seu antecessor, continua se portando de maneira anticientífica — como ao apoiar a autorização da ozonioterapia em agosto de 2023 —, quanto aos profissionais de saúde que aderem a essa “terapia” e demonstram ter dificuldade em diferenciar uma prática baseada em evidências de um tratamento sem respaldo científico.

Tudo piora ao lermos as informações gerais sobre a capacitação apresentadas no site da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na matéria “UFSC: Formação em Auriculoterapia para profissionais de saúde da Atenção Básica”. Segundo a publicação, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, em convênio com a UFSC, oferece o curso em auriculoterapia com o objetivo de capacitar profissionais de nível superior da atenção básica.

A auriculoterapia é descrita como uma técnica que estimula pontos específicos da orelha, geralmente por meio de sementes vegetais esféricas aderidas à pele. Está associada à Medicina Tradicional Chinesa — sistema que já destrinchamos inúmeras vezes, por exemplo aqui.

Na atenção básica, a técnica, após avaliação clínica pela equipe de saúde da família, tem sido utilizada em atendimentos individuais e coletivos “para diversos problemas de saúde”. E pode ser empregada “como tratamento principal ou, mais comumente, em associação com outras terapêuticas”.

Se, porventura, você se perguntou quais seriam esses "diversos problemas de saúde", sinto desapontar: eles não foram especificados. No entanto, em uma pesquisa mais minuciosa na página da universidade, encontrei uma subseção intitulada Recomendações clínicas em auriculoterapia baseadas em evidências, em que os autores afirmam que a auriculoterapia tem respaldo científico para uma infinidade de condições, variando da depressão à obesidade.

Tais recomendações complementam os materiais didáticos do curso de auriculoterapia produzidos pela UFSC, por iniciativa e financiamento do Ministério da Saúde.

Não é a primeira vez que vemos o uso indevido de — supostos — estudos científicos para corroborar uma ideia improvável, para não dizer impossível. O que me chama a atenção nesse caso, assim como na reflexologia e na acupuntura — ambas já discutidas aqui na RQC —, é a inespecificidade das condições médicas para as quais a terapia é “indicada”. Pode ser uma falha no meu raciocínio, mas ainda estou tentando entender como um ponto específico da orelha conseguiria levar alguém da obesidade ao sobrepeso ou à eutrofia, ou ainda eliminar o vício em cigarros e álcool.

A única condição para a qual acreditaria na eficácia da terapia, por já ter observado no meu dia a dia, é a insônia, visto que todas as vezes que faço carinho na orelha dos meus cachorros, eles dormem.

Brincadeiras à parte, poderia encerrar o artigo aqui e afirmar com convicção que essa é mais uma pseudociência que, infelizmente, estamos financiando com os recursos limitados do Ministério da Saúde. Ainda mais absurdo é o fato de essa formação ocorrer desde 2016, ano em que foram capacitados 1.200 profissionais em auriculoterapia. Além do dinheiro desperdiçado, é alarmante imaginar que, caso os anos seguintes tenham mantido o ritmo, já tenhamos mais de 10.000 pessoas que, talvez inadvertidamente, por confiar no bom nome do ministério e da universidade, amarraram suas carreiras profissionais a uma pseudociência.

Como os PDFs que “certificam” a eficácia da prática foram disponibilizados, acredito que seja válido debatê-los. Mas, antes, precisamos entender de onde vêm as noções da auriculoterapia.

 

O que é auriculoterapia?

Devo confessar que, até iniciar a estruturação deste artigo, não fazia ideia de como a auriculoterapia surgiu nem de quem foi seu criador. Por conta disso, utilizei como base teórica o artigo “History of Auriculotherapy: Additional Information and New Developments”, publicado no Medical Acupuncture (um periódico voltado a evidências sobre a integração da acupuntura com a medicina), de autoria de Raphael Nogier — filho do criador da prática.

Além disso, consultei “The History, Mechanism, and Clinical Application of Auricular Therapy in Traditional Chinese Medicine”, publicado no Evidence-Based Complementary and Alternative Medicine — um periódico revisado por pares que trata de temas relacionados à medicina alternativa e complementar.

O conceito de aplicar estímulos a pontos específicos da orelha para tratar problemas de saúde, embora com raízes antigas, tem uma origem e evolução controversas. Algumas referências apontam que o registro mais antigo sobre o tema está presente no livro “Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo”. Esse tratado, escrito por volta de 2600 AEC, é considerado um dos pilares da Medicina Tradicional Chinesa. A obra é atribuída ao semimítico imperador chinês Huangdi; contudo, acredita-se que seja uma compilação de diversos autores.

Também há registros de uma tradição folclórica europeia de cauterização de pontos da orelha para combater certos tipos de dor, como ciática e dor de dente.

De acordo com a “história oficial” da prática, em 1951 o médico francês Paul Nogier, estimulado por relatos de pacientes que teriam melhorado de dor ciática com o estímulo de um ponto da orelha, conduziu uma investigação e percebeu que o ponto “tratado” nunca havia sido descrito pelos acupunturistas chineses. Novas pesquisas levaram-no a imaginar que cada ponto do pavilhão auricular parecia estar relacionado a uma parte do corpo.

Segundo sua interpretação, a orelha se assemelhava à imagem de um feto invertido — o que, na realidade, foi um episódio de pareidolia (o fenômeno psicológico de atribuir significado a estímulos vagos, como enxergar Jesus em uma torrada, ou um rosto em uma tomada).

Ao longo dos anos, Nogier sofisticou tanto seu “mapa” da orelha quanto as formas de intervenção possíveis, lançando as bases da auriculoterapia moderna

Em 1969, Dr. Paul Nogier publicou o primeiro tratado sobre esse método, intitulado Le Traité d’Auriculothérapie.

Curiosamente, embora a publicação de Nogier seja considerada a bíblia norteadora da prática, foi necessária uma ação, em 1982, do Escritório Regional do Pacífico Ocidental da OMS para resolver a confusão causada por nomes e regiões duplicadas. A questão foi resolvida, de fato, em 1987, quando a organização publicou o relatório “Esquema de Padronização dos Pontos Auriculares”, cujo objetivo era padronizar a nomenclatura e a localização dos pontos.

No entanto, e apesar desse novo guia, o uso dos pontos auriculares na Europa ainda difere da prática chinesa. Além desse problema de padronização, há uma grande disputa de narrativas que tentam explicar o mecanismo por trás da prática.

Dentre as teorias mais citadas, temos:

1. Teoria do Homúnculo (Arranjo Somatotópico): considera que a orelha se assemelha a um feto invertido, com cada parte auricular representando uma área do corpo, como o lóbulo da orelha, que corresponderia à cabeça e ao cérebro.

2. Organização Embriológica: propõe que a orelha reflete as três camadas germinativas do desenvolvimento embrionário. O lóbulo da orelha corresponderia ao ectoderma (a camada mais externa, que dá origem à epiderme, cabelo, unhas, etc.), a concha ao endoderma (camada interna, que dá origem ao trato gastrointestinal, intestinos, fígado, pâncreas, pulmões e parte dos tecidos glandulares), e o restante da orelha ao mesoderma (camada intermediária, que origina o sistema musculoesquelético). Com isso, problemas em órgãos específicos, como o pulmão (derivado do endoderma), poderiam ser tratados ou diagnosticados por meio da concha da orelha.

3. Teoria dos Meridianos: associa a orelha aos 12 meridianos da acupuntura, sugerindo que todos os canais convergem na orelha.

As hipóteses são mutuamente excludentes: de fato, se uma delas estiver correta, o uso de auriculoterapia seguindo os princípios de qualquer uma das outras traria riscos enormes à saúde do paciente. Como nenhuma está, o risco é evitado. A melhor explicação para os casos em que a auriculoterapia parece ter alguma eficácia envolve a combinação de efeito placebo, regressão à média na maioria dos problemas de saúde e, claro, uma escuta ativa e uma postura acolhedora, que geram bem-estar psicológico.

Chega a ser um oximoro tentar falar de evidências científicas quando a prática, em sua base teórica, não passa de uma especulação fantasiosa e sem respaldo no mundo material. Deixando claro, não há evidências – pelo menos em publicações sérias – que indiquem que a orelha, a íris, ou o pé possuam um “mapa do tesouro” para problemas de saúde que não estejam ligados, diretamente, a esses locais.

 

As “evidências”

O curso oferecido pela UFSC afirma que a auriculoterapia tem evidências científicas para diversas condições de saúde. No entanto, ao ler o documento completo, que abrange 15 relatórios sobre diferentes problemas, percebi algumas inconsistências que, ao menos, deveriam suscitar dúvidas.

O documento foi organizado em três etapas. A primeira consistiu em uma exploração da literatura científica, iniciada em 2018, nas três grandes bases de dados (Scopus, PubMed e Web of Science), com o objetivo de mapear preliminarmente as condições mais comuns na atenção primária à saúde para as quais houvesse evidências sobre o uso de auriculoterapia. A segunda envolveu uma nova busca focada nas condições selecionadas na etapa anterior, com o intuito de eliminar estudos irrelevantes e incluir o maior número possível de estudos pertinentes. A terceira consistiu na análise do conteúdo e da qualidade das publicações selecionadas.

A primeira busca resultou em 239 ensaios clínicos candidatos. Após aplicar os critérios de exclusão — como a não relação com auriculoterapia, o uso combinado com outras modalidades de tratamento, a impossibilidade de avaliação separada da auriculoterapia, publicações em idiomas diferentes de inglês, português ou espanhol, e a ausência de avaliação de desfechos clínicos relevantes —, a amostra final ficou com 147 ensaios. Com base nesses estudos, foram elaborados os 15 relatórios mencionados, focados nos problemas mais comuns da atenção básica encontrados: dor crônica, obesidade, tabagismo, depressão, náusea e vômitos.

O que se percebe, analisando os relatórios, é um forte “viés de boa vontade”: estudos de baixa qualidade ou revisões duvidosas são sistematicamente “promovidos” a evidência aceitável.

Por exemplo, no caso das dores crônicas, os autores utilizaram como “evidência de eficácia” a revisão sistemática conduzida por Zhao, H. e colegas intitulada Auricular therapy for chronic pain management in adults: A synthesis of evidencee classificada como de "alta qualidade". No entanto, uma análise mais atenta revela que, dos 15 ensaios clínicos randomizados (RCTs) incluídos, 13 eram de periódicos científicos, um era uma dissertação de mestrado não publicada e o último, uma tese de doutorado não publicada. A qualidade geral dos estudos é questionável, com uma grande parte apresentando falhas metodológicas, incluindo problemas de tamanho de amostra (86,67% dos estudos tinham menos de 50 indivíduos por grupo, o que aumenta o risco de resultados falsos positivos).

Talvez haja, de fato, interruptores mágicos em nossas orelhas, só esperando a sementinha correta. No entanto, admito que estou mais propenso a enxergar o dragão invisível na garagem de Carl Sagan. O que temos de concreto, pelo menos de acordo com as evidências de alta qualidade, é que a auriculoterapia, assim como suas colegas acupuntura, reflexologia e iridologia, atua como um placebo muito eficiente, devido a toda a teatralidade das sessões.

Em comentário intitulado "Auricular acupuncture", a respeito da pesquisa "Auricular acupuncture for pain relief after ambulatory knee surgery: a randomized trial", Edzard Ernst aponta que a auriculoterapia parte do pressuposto de que todos os órgãos internos estão representados na orelha. Terapeutas utilizam mapas que indicam essas representações. Um dos muitos problemas que a prática enfrenta é a existência de múltiplos mapas, sem consenso claro sobre a localização dos pontos. Além disso, ela contradiz todo o conhecimento estabelecido sobre fisiologia e anatomia.

Claro, os defensores poderiam argumentar que se trata de uma prática inócua e que, mesmo sem respaldo científico convincente, as pessoas se sentem melhor e ela possui um bom custo-benefício. Para esses, sou obrigado a afirmar que investir tanto em auriculoterapia, ou qualquer outra prática integrativa e complementar, não é apenas irracional; é desviar recursos de terapias que realmente salvam vidas.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

ORSI, C. Prefeitura de SP desperdiça verbas gabando-se de desperdício de verbas. 2024. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2024/05/21/prefeitura-de-sp-desperdica-verbas-gabando-se-de-desperdicio-de-verbas.

UFSC. Formação em Auriculoterapia para profissionais de saúde da Atenção Básica: Informações Gerais. Disponível em: https://auriculoterapiasus.ufsc.br/informacoes-gerais/.

NOGIER, R. History of Auriculotherapy: Additional Information and New Developments. Med Acupunct. 2021. Dec 1;33(6): 410 - 419. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34976274/.

HOU, P. et al. The History, Mechanism, and Clinical Application of Auricular Therapy in Traditional Chinese Medicine. Evid Based Complement Alternat Med. 2015:2015:495684. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26823672/.

UFSC. Guia de auriculoterapia para dor crônica baseado em evidências. 2023. Disponível em: https://auriculoterapia.paginas.ufsc.br/files/2023/06/Guia-dor_cronica_final.pdf-26_06_2023.pdf.

ZHAO, H. Auricular therapy for chronic pain management in adults: A synthesis of evidence. Complement Ther Clin Pract. 2015 May;21(2): 68 - 78. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25921554/.

ERNST, E. Auricular acupuncture. CMAJ. 2007 Apr 24;176(9): 1307. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC1852858/.

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899