Soroterapia: riscos sem benefícios

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17 abr 2024
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antiga ilustração de transfusão de sangue

 

No domingo 7 de abril, o programa Fantástico fez uma matéria primorosa a respeito da soroterapia, uma “terapia” que administra, por via intravenosa, nutrientes e vitaminas, e que vem conquistando uma grande quantidade de adeptos nas redes sociais.

Com uma pequena busca no Google, é possível identificar inúmeras clínicas que realizam o procedimento, associando-o a alegações absurdas de benefícios como auxiliar na depressão, melhorar a saúde sexual, ajudar no emagrecimento, prevenir doenças e, como não podia faltar, “desintoxicar” o corpo. Há diversos artigos publicados aqui na RQC que desmontam essa ideia estapafúrdia de “detox”. Você pode lê-los aqui e aqui.

A soroterapia, da maneira que está sendo proposta, não passa de uma pseudociência ineficaz e, como a matéria do Fantástico apontou, possivelmente perigosa.

Entretanto, e isso pode ser o mais surpreendente, a prática tem uma aplicabilidade real na área clínica. Nesse caso, ela não recebe a alcunha de “soroterapia”, mas sim de terapia intravenosa (ou administração intravenosa), uma ferramenta essencial para o manejo de algumas situações delicadas.

Ao contrário da panaceia da soroterapia, a terapia intravenosa conta com evidências concretas que recomendam sua aplicação para uma série de finalidades. Isso inclui pacientes submetidos à nutrição parenteral, além daqueles que estão desidratados, precisam de manejo para correção de fluidos ou apresentam distúrbios hidroeletrolíticos. Como sempre, qualquer tipo de suplementação vitamínica ou nutricional – qualquer que seja a via de administração – só faz sentido para pessoas com deficiência dos nutrientes em questão. Caso contrário, não passa de desperdício, muitas vezes associado a riscos desnecessários.

 

Coquetel

Aparentemente, o primeiro indivíduo a testar uma fórmula intravenosa com o “intuito” de tratar diversas patologias por meio do aumento de vitaminas e nutrientes – quase imitando a medicina ortomolecular de Pauling – foi o médico John Myers em 1970. Como resultado, o preparo ficou conhecido como “Coquetel de Myers”, uma solução composta por magnésio, vitaminas do complexo B, ácido clorídrico diluído, cálcio e vitamina C.

Obviamente, esse possível pancresto atraiu seguidores, como o antigo presidente da Associação Médica Holística Americana e autor de livros Alan Gaby.

Além dos inúmeros livros publicados sobre medicina alternativa e complementar, Gaby publicou uma história da terapia intitulada “Intravenous Nutrient Therapy: the Myers Cocktail” no periódico Alternative Medicine Review – onde mais, não é mesmo? Um resumo do artigo:

Após a morte de Myers, Gaby herdou seus pacientes e continuou a tratá-los com uma versão modificada do “Coquetel de Myers”, aumentando a concentração de magnésio e vitamina C, e retirando o ácido clorídrico. Após um período de 11 anos e, aproximadamente, 15 mil aplicações em um número estimado de 800 a 1.000 pacientes, Gaby acreditou ter observado que sua versão modificada era útil para uma ampla gama de condições clínicas. Isso incluía ataques de asma, enxaquecas, fibromialgia, infecções do trato respiratório superior, rinite alérgica sazonal, hipertireoidismo, entre outras.

Esses resultados foram apresentados em mais de 20 conferências médicas para milhares de profissionais de saúde, e é provável que milhares de médicos, hoje, ofereçam a fórmula a seus pacientes (a estimativa feita por Gaby, há 22 anos, era de mil profissionais).

Gaby ainda afirma que não encontrou um único médico cuja experiência com esse tratamento tenha obtido resultados significativamente diferentes dos seus. Mas ressalta que, apesar dos muitos relatos anedóticos positivos, há poucas pesquisas publicadas que apoiem a utilização da terapia.

Para corroborar a utilização da prática, o autor utiliza alguns subterfúgios comuns na medicina alternativa, como colocar na mesma ordem de importância resultados de estudos feitos com padrões de qualidade diferentes. E, ainda mais pernicioso, distorcer os dados da pesquisa para favorecer uma narrativa preestabelecida.

Um aspecto digno de destaque é a forma como Gaby se refere às possíveis evidências positivas da terapia intravenosa para a asma. Ele menciona dois ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos, placebo controlados que utilizaram sulfato de magnésio intravenoso para melhorar a função pulmonar e reduzir a taxa de hospitalizações, e obtiveram resultados positivos.

Contudo, é importante ressaltar que isso apenas sugere a eficácia do magnésio intravenoso para uma situação específica, não respaldo geral à soroterapia como um todo.

O farmacêutico Scott Gavura, em seu artigo “No evidence IV vitamin drips can treat infertility”, para o Science-Based Medicine, fez um comentário cirúrgico a respeito da terapia intravenosa. Em tradução livre:

“A utilização de vitaminas injetáveis, como B12 ou ferro, é respaldada cientificamente e muito comum na rotina médica para tratar deficiências reais ou gerenciar toxicidades específicas de medicamentos. Além disso, há o uso terapêutico de minerais em doses elevadas, caso do magnésio intravenoso para ataques agudos de asma. No entanto, não há justificava médica para infundir vitaminas em uma veia quando você pode obter esses nutrientes de forma mais apropriada em sua dieta”.

Em outras palavras, e quase soando repetitivo, a melhor forma de obter nutrientes continua sendo pela boca!

 

Mas por que utilizam?

Kaminski, M. et al. realizaram uma pesquisa transversal intitulada “Why Polish patients use vitamin drips services: results of a preliminary cross-sectional survey”.  Nela, os autores elaboraram um questionário na língua polonesa e inglesa e o disseminaram via Google Forms em vários grupos de saúde e medicina complementar do Facebook.

Apesar de terem postado em 70 grupos – totalizando mais de 437 mil membros –, os pesquisadores só obtiveram 32 respostas, das quais 17 eram de indivíduos que utilizavam serviços de suplementação parenteral (soroterapia) na Polônia.

A maioria dos respondentes declarou ter passado por experiências ruins com médicos. Além disso, os motivos para escolha da prática foram variados, sendo que a utilização da vitamina C parenteral foi a mais relatada entre os usuários.

Os pesquisadores destacam que os poloneses consideram o desempenho do sistema de saúde nacional fraco, e essa percepção parece vir de uma parcela que relata insatisfação com a classe médica. A maioria dos entrevistados afirmou seguir recomendações dos seus médicos, o que sugere que a soroterapia pode ser vista como um complemento ao cuidado padrão.

Os autores ainda apontam que essa hipótese é corroborada pelos motivos declarados pelos participantes, sendo que a maioria está relacionada a benefícios gerais para a saúde (imunidade, resistência física, fadiga, desintoxicação) ao invés de indicações específicas.

Além disso, eles salientam que a medicina alternativa costuma ser proposta para condições de saúde que apresentam sintomas altamente subjetivos. Quando as indicações e os desfechos de saúde são mal definidos, o efeito placebo é mais perceptível, o que pode resultar em uma boa avaliação subjetiva da intervenção. 

Por óbvio, a limitação mais grave do estudo foi a baixa adesão de respostas e, claro, ter sido realizada na população polonesa. Por conta disso, é necessário cautela ao interpretar os resultados.

 

Riscos sem benefícios

Dayal, S. e Kolasa, K. realizaram uma revisão da literatura intitulada “Consumer Intravenous Vitamin Therapy: Wellness Boost or Toxicity Threat” com o objetivo de verificar os benefícios e os riscos da prática.

Após buscarem informações em bancos de dados acadêmicos, no Google e consultarem seus pares e provedores locais da prática, os autores destacam que o maior benefício trazido pelo procedimento é a velocidade e a biodisponibilidade dos nutrientes administrados de maneira intravenosa.

Mas destacam que a soroterapia não é uma prática isenta de riscos, sendo que os mais comuns incluem flebite (inflamação de uma veia), extravasamento (vazamento do líquido para o tecido circundante), embolia aérea, hipervolemia (concentração muito elevada de plasma), infecção e, talvez, o risco de toxicidade de antioxidantes e minerais, dependendo da quantidade administrada, da frequência e da pessoa que está recebendo.

Os pesquisadores citam outros efeitos adversos graves que podem ocorrer devido a uma alteração aguda nos eletrólitos: uma overdose de potássio pode causar arritmias cardíacas fatais; correções rápidas de sódio, com uma solução salina isotônica, podem ocasionar uma herniação cerebral (deslocamento do cérebro por conta do aumento da pressão intracraniana); também pode ocorrer uma intoxicação por água que, por sua vez, pode causar dor de cabeça, confusão, vômito e náusea; entre outros sintomas.

Por fim, os pesquisadores ressaltam que, embora o Dr. Gaby – aquele que tratamos anteriormente – afirme que o “Coquetel de Myers” é seguro, não há relatos que comprovem que ele ou outras formulações sejam eficazes. Da mesma forma, as evidências são insuficientes para sugerir que a prática é mais eficaz do que consumir alimentos ou utilizar suplementos orais para reduzir os riscos de deficiências de micronutrientes, ou apoiar a saúde imune.

Como conclusão, destacam que a soroterapia vendida em clínicas é uma alternativa mais cara e superestimada em relação à ingestão oral de nutrientes e fluidos. O uso frequente dessa terapia pode causar desequilíbrios nutricionais graves, aumentar o risco de infecções e interagir negativamente com medicamentos.

Eu não poderia ter dito melhor.

 

 

Mauro Proença é nutricionista

REFERÊNCIAS

GABY, A. Intravenous nutriente therapy: the “Myers’ cocktail. Altern Med Ver. 2002 Oct;7(5):389-403. Disponível em: https://wellnesspharmacy.com/wp-content/uploads/2015/01/myers_cocktail.pdf.

GAVURA, S. No evidence IV vitamin drips can treat infertility. 2023. Disponível em: https://sciencebasedmedicine.org/no-evidence-iv-vitamin-drips-can-treat-infertility/.

KAMINSKI, M. et al. Why do Polish patients use vitamin drip services? Results of a preliminar cross-sectional survey. Pol Arch Intern Med. 2020 Nov 30;130(11):1007-1009. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32930545/.

DAYAl, S. e KOLASA, K. Consumer Intravenous Vitamin Therapy: Wellness Boost or Toxicity Threat? Nutrition Today. 56. 234-238. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/354838784_Consumer_Intravenous_Vitamin_Therapy_Wellness_Boost_or_Toxicity_Threat.

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