Incluindo narrativas no debate de políticas públicas

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9 fev 2023
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fogueira

 

 

O ser humano é um contumaz contador de histórias. Antes do desenvolvimento da escrita, era principalmente através da narrativa oral que nossos antepassados transmitiam conhecimentos e informações sobre onde caçar, que plantas comer ou quando era hora de levantar acampamento. Também, lições, costumes e regras sociais eram comunicados por meio das célebres “morais da história”. Funções que as narrativas continuam a exercer, mesmo nestes tempos de internet e mídias variadas, de livros a “metaversos” digitais. Assim, nada mais natural do que histórias, reais ou fictícias, sejam incorporadas na tomada de decisões em políticas públicas.

O problema é como fazer isso de maneira rigorosa e científica, num mundo abarrotado de narrativas muitas vezes conflitantes, e por vezes completamente falsas, que vivemos hoje. Para tanto, as pesquisadoras Sarah Dillon, professora da Faculdade de Inglês da Universidade de Cambridge, e Claire Craig, pró-reitora do Queen's College da Universidade de Oxford, ambas no Reino Unido, propõem um método que chamam de “storylistening” (algo como “escutação de histórias” em uma interpretação livre). Apresentada em livro publicado pela dupla em 2021, e tema de texto para discussão assinado pela dupla em edição recente da revista Science, a ideia busca algo como que “elevar” as histórias e narrativas em torno de determinados temas ao grau de evidência, para que então sejam usadas na elaboração de políticas públicas ou tomada de decisões sobre elas.

“O storylistening é uma estrutura teórica e prática para levar em conta uma ampla gama de diferentes tipos de evidências de forma a melhorar a tomada de decisões em políticas públicas”, resume Dillon em entrevista à Revista Questão de Ciência. “Não é de forma alguma algo desenhado para desacreditar ou invalidar evidências científicas. Na verdade, o contrário disso. É defender que chegamos a um ponto em nossa cultura mundo afora em que sabemos que as evidências científicas são necessárias, mas não suficientes, para enfrentar alguns dos grandes problemas que encaramos, das mudanças climáticas aos nossos sistemas econômicos ou pandemias”.

Segundo Dillon, atualmente há um reconhecimento geral de que é preciso incluir os saberes de diversas áreas e fontes legítimas nos processos de tomada de decisão em políticas públicas, sejam acadêmicos de campos como as ciências humanas e sociais, sejam de atores como, por exemplo, “comunidades indígenas e seu conhecimento do terreno e do ambiente que habitam há décadas".

“Mas não podemos simplesmente pegar todas as formas de evidências narrativas e dizer que são válidas, da mesma forma que não podemos todas as formas de evidências científicas e dizer que são válidas”, explica. “Precisamos de maneiras de entender como usar estas evidências de maneira rigorosa. E é isto que o storylistening oferece, por meio de uma estrutura em quatro pilares. Com ela, podemos começar a entender como e de que maneiras as histórias estão funcionando, de forma que possamos identificar se trazem um conhecimento útil ou não, e como podemos incorporar este conhecimento em uma base mais ampla de evidências para decisões em políticas públicas”.

Os quatro pilares a que ela se refere são as funções cognitivas e coletivas das narrativas, que não são necessariamente sobre o que se passa internamente nas histórias, mas como operam no mundo, ou o que podem ter quando observadas sob seu valor cognitivo, o conhecimento que trazem. O primeiro pilar é o enquadramento, ou ponto de vista. Novamente, ressalta, isso não quer dizer que todo e qualquer ponto de vista é válido para a produção de evidências narrativas, tampouco que serão todos úteis.

“O que as histórias vão fazer é oferecer múltiplas perspectivas”, diz. “Pense nisso como quando fazemos um desenho em perspectiva nas aulas de artes. Se olharmos para uma maçã de apenas uma direção, só vamos ver parte desta maçã. Mas quanto mais direções diferentes olharmos a maçã, mais abrangente será a imagem que temos da maçã. Então, a maçã é o sistema político, a política pública, a questão do mundo real, o mundo a que a história, a narrativa está relacionada. E quanto mais perspectivas tivermos, mais poderemos entender a questão política como um todo”.

O segundo é a forma como as histórias criam e moldam identidades coletivas, não apenas por meio de personagens e temáticas, mas também nos formatos e compartilhamento, permitindo a classificação de populações – e interesses, necessidades etc. – para além dos tradicionais tipos como sexo ou gênero, etnia ou classe social.

“A maneira como as histórias sobre vacinas ou a pandemia de COVID-19 são compartilhadas, por exemplo, cria redes de narrativas semelhantes, e se formos traçar as origens destas narrativas, podemos mapear a população de formas diferentes”, conta. “Então, é algo que diz respeito ao compartilhamento das histórias, não ao conteúdo: a maneira como conectam grupos de pessoas de formas que, de outro modo, não veríamos”.

 

Modelos

Já o terceiro são os modelos de realidade e interação que as histórias fornecem, ponto em que a ficção ganha importância, destaca a pesquisadora.

“As narrativas podem nos fornecer modelos, da mesma maneira que os modelos construtivos da ciência, que abstraem partes de sistemas complexos para fazer experimentos que permitem operar um raciocínio delegado (surrogative reasoning, no original em inglês) e racionalizar seus resultados em decisões do mundo real”, considera. “Então modelos construtivos, claro, são muito importantes, mas não podem fazer tudo. Outro problema é que são bons em grandes modelagens, mas não em incluir coisas como condições locais, fatores sociológicos, culturais, éticos. Já os modelos narrativos podem incorporar estas coisas de maneiras que os modelos científicos não podem, e desta forma serem usados como parte desta base de evidências científicas mais abrangente de uma forma que, esperamos, fortaleça a evidência científica, e não a enfraqueça”.

Por fim, o quarto pilar é a capacidade que as histórias têm de nos permitir antecipar o futuro, seja por meio de realidades diferentes, sob premissas e condições diferentes, ou cenários idílicos.

“Não podemos ter o conhecimento científico, a certeza sobre um futuro que ainda não aconteceu”, aponta. “Com a ciência podemos extrapolar, podemos entender que algumas leis da física não vão mudar - não vamos ver, de repente, a gravidade parar de funcionar, por exemplo -, mas os modelos narrativos podem criar formas de antecipação do futuro que nos ajudam a imaginar e fazer experimentos sobre cenários de maneira a prever possíveis consequências de decisões que tomamos no presente”.

 

Combate à desinformação

Outro ponto importante é que estas funções das narrativas podem ser derivadas de relatos sobre histórias reais, coisas que de fato aconteceram ou acontecem, ou fictícios, em mundos ou cenários imaginários, destaca Dillon.

“Então o storylistening algumas é vezes sobre o que está dentro das histórias, mas também é sobre como funcionam, como são compartilhadas, como operam”, explica. “Assim, as histórias podem ser radicalmente fictícias, se passarem em um planeta diferente, em um mundo diferente, com alienígenas, e ao mesmo tempo, conter conhecimento. Elas podem fazer isso, por exemplo, seja pela maneira como são compartilhadas, ou pela forma metafórica em que modela algo a respeito do mundo real”.

A pesquisadora reconhece que nestes tempos de “pós-verdade”, a princípio pode parecer contraintuitivo usar narrativas para informar políticas públicas. Ela defende, no entanto, que o storylistening é justamente uma ferramenta para organizar e tratar com rigor as histórias que circulam e vão continuar circulando na sociedade, de forma a extrair conhecimentos e informações que podem ser úteis nos processos decisórios, e descartar o ruído.

“Pode parecer contraintuitivo alegarmos que devemos levar as histórias a sério, principalmente depois do que vimos nos últimos anos, com Trump, Brexit, Bolsonaro, que estão radicalmente usando mal e abusando do poder das histórias”, conta. “Mas é justamente por isso que precisamos desta estrutura. Precisamos começar a educar as pessoas para que não fiquem à mercê das histórias, para que possam ter o que chamamos de letramento narrativo, entender como as histórias funcionam e as afetam, de forma que não fiquem sujeitas ao abuso com que as narrativas são usadas”.

E se isso de alguma forma lembra educação midiática ou estímulo ao pensamento crítico, Dillon argumenta que embora o storylistening não tenha como proposta lutar contra a má informação ou a desinformação, muito menos legitimá-las ou incorporá-las ao processo decisório, o método pode ser útil para combater estes problemas e diminuir o nível de desconfiança na sociedade. Ela dá como exemplo perspectivas que não sejam exatamente precisas ou acuradas, ou até mesmo falsas ou mentirosas - como alguém que diz que uma maçã é uma pera. Segundo a pesquisadora, de alguma forma as narrativas podem trazer informações sobre pessoas que têm este ponto de vista, ajudando a entender o porquê deste determinado posicionamento, as decisões que podem ser tomadas relacionadas a isso e como deve ser a comunicação com elas após a política pública ser implementada.

“Precisamos diferenciar letramento narrativo, que é algo que alguém teria em um nível individual, do que esperamos alcançar em um nível coletivo”, ressalta. “O storylistening é uma estrutura para angariar evidências. Então, do ponto de vista do storylistening, quando alguém diz que uma maçã é uma pera, e todas as outras evidências deixam bem claro que a pera não é uma maçã, podemos simplesmente ignorar aquela narrativa e não usá-la como evidência. A não ser que seja do interesse da tomada de decisão saber mais sobre aquele grupo de pessoas que insiste que uma pera é uma maçã. Se esta história está sendo contada por elas como uma história sobre o mundo real, é simplesmente uma mentira. Mas se você quer saber mais sobre como estas narrativas que estão circulando, como estão sendo contadas e compartilhadas, é útil levar estas histórias a sério. Na verdade, pode ser muito perigoso fingir que estas narrativas não existem, porque elas vão continuar a existir e a circular, quer você queira ou não. Aí isso se torna uma evidência, mas uma evidência narrativa sobre aquele grupo, não sobre o mundo real”.

Dillon também rejeita comparações das evidências narrativas com evidências científicas, voltando a frisar que o storylistening busca ampliar, complementar e diversificar as bases de evidências para a tomada de decisões em políticas públicas, mas de forma alguma deturpar ou substituir o rigor que devem ter. Além disso, ela lembra que qualquer ciência, seja exata, como a Física, ou, das chamadas “Humanidades”, como a literatura, está sujeita a todas as falhas humanas, assim como qualquer outra forma de investigação. E que é justamente lançando mão de métodos e sistemas rigorosos – incluindo “usar as ferramentas certas para elucidar uma questão, analisar as coisas certas, verificar sua replicabilidade, ter revisão por pares para que eles verifiquem seu trabalho, tornar seus dados disponíveis, desenvolver sobre conhecimentos existentes e abrir novas linhas de investigação” – que elas buscam mitigar este problema.

“Não concordo com a ideia de que a ciência é objetiva e as Humanidades, subjetivas. Elas têm exatamente os mesmos rigores e garantias”, afirma. “Você não pode dizer que a literatura é subjetiva só porque não pode conduzir ensaios controlados randomizados de uma novela. Da mesma forma que não poderíamos usar teoria crítica ou teoria literária para estudar um átomo. O método científico é necessário para questões da ciência, e outros métodos são necessários para analisar outros tipos de coisas, e isso não significa que estes métodos são menos rigorosos. Isto é algo que precisamos transmitir, pois há um posicionamento de algumas pessoas dentro da comunidade científica que consideram que seus métodos são os únicos rigorosos o suficiente para estudar tudo. E isto é uma falácia”.

 

Provas de conceito

E é justamente para demonstrar isso que Dillon e Craig estão conduzindo duas chamadas “provas de conceito” de storylistening em políticas públicas. Os temas escolhidos pela dupla foram “armas nucleares” e “uso do espaço”.

Storylistening é angariar evidências, da mesma maneira que se faria com outras formas de investigação: você identifica sua questão, que áreas de conhecimento acadêmico ou outras formas de expertise são mais relevantes nela, e então identifica as pessoas que estão fazendo o melhor trabalho, os mais confiáveis e avançados nestas áreas”, explica.

Desta forma, no projeto sobre armas nucleares, o mais adiantado no momento, a pesquisadora conta que ela e a colega já abordaram os principais atores na questão no Reino Unido, aos quais pediram para identificar quais são os desafios políticos mais urgentes nesta área, como imaginam que vão se desenvolver nos próximos 10 anos e perguntaram que decisões precisam tomar, e que evidências lhes faltam. Já de posse das respostas, compilaram as entrevistas em um sumário que apresentaram a acadêmicos de uma ampla gama de disciplinas, que agora estão produzindo textos semelhantes, sintetizando as evidências narrativas de suas áreas que acham que podem ser úteis na tomada de decisão de políticas públicas para o tema.

“No fim de março vamos realizar um workshop em que juntaremos os acadêmicos e os tomadores de decisão para que aprofundem sua síntese, e escreveremos um relatório deste workshop para compartilhar seus achados”, promete.

Já para o projeto sobre uso do espaço, Dillon conta que conseguiram mais financiamento, o que vai lhes permitir ampliar as consultas a atores e acadêmicos, levando mais tempo nesta fase, e menos no workshop, que deve ser realizado entre julho e setembro, com os resultados publicados mais para o fim do ano.

“A ideia é que até o fim do ano tenhamos duas provas de conceito de exercícios em storylistening, ainda que não no coração do governo, em colaboração com o governo”, diz. “Deles teremos dois relatórios que podem ajudar a guiar as partes interessadas e os tomadores de decisão em como fazer isso de verdade. É o que esperamos”.

 

Participação do público

Outro aspecto interessante do storylistening que as pesquisadoras destacaram em seu texto para discussão na Science é estimular a participação do público na elaboração e tomada de decisão em políticas públicas, e assim ajudar a reforçar as estruturas da democracia. Segundo Dillon, à luz dos acontecimentos dos últimos anos, como a ascensão de movimentos de extrema-direita, há correntes de pensamento que acham preciso sermos mais “flexíveis ou experimentais” nas estruturas democráticas usadas em nossos sistemas políticos. E entre elas justamente a participação do público.

“São numerosas as maneiras como o storylistening se conecta com isso”, afirma. “As evidências que juntamos por meio do storylistening podem ser usadas para alimentar exercícios de deliberação pública. Ou um exercício de deliberação pública pode produzir evidências narrativas úteis para uma tomada de decisão”.

Ela cita como exemplo disso projeto recente conduzido pela Nesta, organização filantrópica britânica dedicada à inovação em temas sociais. De acordo com Dillon, para substanciar as discussões em torno da inteligência artificial e seus impactos na sociedade, a Nesta ouviu não só tomadores de decisão e elites econômicas como procurou saber se os trabalhadores nas ruas, que serão afetados mais diretamente por isso, teriam preocupações parecidas.

“A maneira que fizeram isso foi pedir para os trabalhadores contarem histórias sobre como imaginam que seu futuro seria se as tecnologias de inteligência artificial se tornassem ubíquas”, conta. “E foi fascinante, pois muitas das histórias revelavam que eles não estavam preocupados com uma revolução dos robôs tomando o planeta como nos filmes de ficção científica ou outras coisas dramáticas assim. Eles estavam preocupados com coisas mais prosaicas que os trabalhadores sempre estão mais preocupados: será que terem renda suficiente? Ainda terei emprego? Aposentadoria? Poderei alimentar minha família?”.

Para Dillon, isto é uma amostra de como o storylistening também pode indicar prioridades nas pautas e comunicações de políticas públicas para públicos específicos.

“Muitos deles já estão acostumados a ver o desenvolvimento de tecnologias e novos sistemas em seus ambientes de trabalho. Não é algo que não esperem”, conclui. “A| questão é que eles se mostraram tradicionalistas. Mesmo frente a uma coisa louca, revolucionária, como a inteligência artificial, para eles é apenas mais uma tecnologia que vai mudar meu trabalho, então eles ainda estão mais interessados em saber é ‘que impacto que isto terá no meu ambiente de trabalho?’”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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