Ainda vale a pena ler "A Origem das Espécies"?

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25 nov 2022
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Charles Darwin

 

O 24 de novembro, Dia da Evolução, marca a data da publicação do mais celebrado trabalho de Charles Darwin, seu livro “A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida”, cuja primeira edição nasceu em 1859. Movido pela chegada dessa comemoração (bem como por comentários duvidosos que tenho visto nas redes sociais ao longo dos anos), resolvi escrever sobre se ainda é útil, para biólogos em particular, mas para qualquer pessoa no geral, ler “A Origem”. Do meu ponto de vista, a resposta é um sonoro “sim”. Explico.

Evidentemente, você não vai aprender moderna biologia evolutiva lendo “A Origem”. Não obstante, essa obra vitoriana traz consigo o espírito científico de como fazer biologia evolutiva, que temos como central até hoje. Para o desespero de alguns biólogos, há no darwinismo uma espécie de essência — o cerne da visão de mundo que herdamos de Darwin. Para o falecido paleontólogo, biólogo evolutivo e historiador da ciência S. J. Gould, em sua obra final — “The Structure of Evolutionary Theory” —, a estrutura da visão de mundo darwiniana é erigida sobre um tripé (ou um coral com três “ramos” principais, primários): agência, eficácia e escopo.

Agência. Darwin enfatizou a unidade sobre a qual age o seu motor evolutivo principal, a seleção natural: o organismo individual. A seleção natural, então, atua sobre o sucesso reprodutivo (e de sobrevivência) diferencial entre organismos. Se você olha para o mundo e vê ecossistemas em aparente harmonia, complexos e interdependentes, Darwin assegura que isso é apenas uma consequência da seleção natural agindo majoritariamente sobre os organismos individuais. É a inversão radical da visão da teologia natural, para a qual a complexidade e a suposta harmonia eram um produto criado de cima para baixo, imposto pela divindade.

Eficácia. Quando Darwin formalizou seu argumento evolutivo, enfatizando a mudança por seleção natural, gerou controvérsia. E não porque seus pares eram incapazes de aceitar que tal seleção ocorresse na Natureza. Na verdade, boa parte dos críticos de Darwin, como hoje, reconheciam que a seleção natural poderia ocorrer e provavelmente seria responsável por remover os não tão bem adaptados. Negavam, contudo, que a seleção natural pudesse criar os mais aptos. Darwin, obviamente, argumentava precisamente que sim, ela poderia gerar os mais aptos. Para Darwin, a seleção natural era uma força criativa eficaz, agindo por meio a acumulação gradual de modificações favoráveis ao longo de muitas e muitas gerações.

Escopo. Muitos dos críticos de Darwin eram capazes de aceitar que a seleção natural pudesse ter ação criativa, realizando o equivalente a produzir os cães a partir dos lobos. Contudo, seus críticos não concebiam que a seleção natural fosse capaz de abranger o escopo mais geral, ou seja, não seria capaz de produzir, por exemplo, um cavalo e um cão a partir de um ancestral em comum. Darwin, por outro lado, acreditava que a seleção natural, juntamente com outros mecanismos secundários, seria capaz de explicar, por extrapolação de sua atuação sobre indivíduos em populações, considerando-se a imensidão do tempo geológico, a complexidade da vida e sua diversidade.

Ser darwinista, hoje, é reconhecer que os três pilares acima discutidos ainda estão bem ou, pelo menos, razoavelmente de pé. Isso não significa, contudo, que reformas não tenham ocorrido. Como toda boa ciência, a biologia evolutiva passou, passa e sempre passará por contínuas revisões.

Entender a estrutura tripla que herdamos de Darwin facilita a compreensão de debates que aconteceram/acontecem sobre os possíveis níveis de seleção para além do organismo (por exemplo, o gene como unidade de seleção, conforme discutido no livro “O Gene Egoísta”, de Richard Dawkins); debates sobre o papel que a mutação tem na evolução – isto é, se as mutações são apenas a argila com base na qual a seleção natural realiza seu trabalho de artesão, ou se as mutações têm um papel maior na evolução do que geralmente reconhecido; e debates sobre se a dinâmica microevolutiva (evolução abaixo do nível de espécie) é suficiente para explicar a macroevolução (evolução no nível imediato das espécies e acima desse nível, uma dinâmica na escala dos milhões de anos para mais).

Por esses e outros motivos, que envolvem a própria prática da biologia evolutiva como uma ciência histórica (quem sabe eu possa tratar disso em outra oportunidade), creio que ler A Origem ainda seja relevante. Além disso, julgo bastante interessante ler o documento que é fundador da forma de pensar evolução que herdamos. Finalmente, “A Origem” continua sendo fonte de insights, pois quem melhor do que Darwin para nos guiar pelas mais estreitas veredas da biologia evolutiva?

 

João Lucas da Silva é mestrando em Paleontologia, Universidade Federal do Pampa

 

PARA SABER MAIS

GOULD, Stephen Jay. The structure of evolutionary theory. Harvard University Press, 2002.

Podcast INFINITAS FORMAS, episódio 11

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