Baratas, girafas e a ciência da evolução

Artigo
2 jun 2022
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girafas

 

A seleção natural, fenômeno identificado por Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, é um dos mecanismos mais conhecidos da evolução biológica. 

Em poucas palavras, evolução significa "herança com modificação", ou seja, os organismos apresentam variação entre si (oriunda, em última instância, de mutações genéticas), e estas variações são herdadas pelas gerações descendentes. Nos casos em que a seleção natural atua, algum tipo específico de variação pode resultar em uma vantagem adaptativa – em essência, fazendo com que os indivíduos que a possuem deixem um número maior de descendentes, que também por sua vez tenderão a deixar um número maior de descendentes. Desta maneira, a população, em pouco tempo, será composta majoritariamente de descendentes do indivíduo que primeiro apresentou a variação.

A seleção natural é, portanto, um elemento que atua determinando quais indivíduos deixam descendentes, e quais não. Existe um segundo elemento com atuação importante aqui: a sorte, ou "chance". Características também podem estar presentes na população apenas pela ação da "chance", sem possuir nenhum valor adaptativo: estas características se fixaram apenas ao acaso.

A biologia evolutiva é uma ciência natural histórica, que tem um desafio diante de si: reconstruir os eventos evolutivos do passado, tendo como evidência apenas o padrão biológico encontrado na atualidade. Eventos evolutivos ocorrem ao longo de milhares (ou milhões) de gerações, portanto é impossível acompanhá-los em tempo real, na vasta maioria dos casos (microrganismos com rápido tempo de geração são uma importante exceção). Assim, um dos maiores desafios reside em determinar o que exatamente aconteceu no passado: será que as estruturas observadas atualmente vêm da seleção natural, ou são apenas resultado de "chance", sem valor adaptativo? Tentamos fazer isso dentro do sistema de teste de hipóteses, que será explicado a seguir.

Um tema adequado para explorar este assunto levanta certa polêmica – a "seleção sexual".  Em essência, "seleção sexual" se refere a um tipo especial de seleção natural que atuaria em organismos com genomas diploides, dois sexos e dimorfismo sexual – estas três características são, na verdade, bastante raras se considerarmos toda a diversidade da vida (majoritariamente, microscópica), mas estão presentes na maior parte dos animais e plantas, que são mais conhecidos do ser humano.

Este tipo especial de seleção ocorre no momento que um organismo precisa encontrar um parceiro para se reproduzir, e atua sobre os parâmetros que podem influenciar o acesso ao parceiro. Dois grandes tipos de parâmetros relevantes são reconhecidos: a competição entre os machos e a escolha da fêmea. Os fenômenos são bastante intuitivos e podemos facilmente encontrar exemplos para cada um. Competição entre os machos geralmente toma a forma de lutas e/ou disputas por território, e são um aspecto comum em diversos peixes, pássaros, anfíbios e insetos. 

Talvez os exemplos mais bem estudados sejam os peixes ciclídeos em lagos africanos: os machos são extremamente territoriais e agressivos, e brigam para defender um território onde ocorre a fertilização. 

A escolha das fêmeas se refere a casos em que os machos apresentam sinais de saúde, força e fertilidade, e as fêmeas então decidem com qual irão acasalar – o exemplo mais extremo é encontrado nas "aves do paraíso", onde diversas espécies têm machos extremamente coloridos e enfeitados, que realizam elaborados rituais de dança e canto para as (extremamente pouco ornamentadas) fêmeas. 

A possibilidade de seleção sexual foi inicialmente proposta pelo próprio Darwin, e recebeu enorme atenção dos pesquisadores ao longo dos anos. Existe muito debate teórico sobre o alcance e o tamanho da influência da seleção sexual na trajetória das espécies, porém há uma grande quantidade de evidência acumulada indicando que o fenômeno, sim, tem importante contribuição no processo evolutivo.

Dois recentes artigos científicos promovem um contraste de abordagens utilizadas para resolver esta questão central.

O primeiro, publicado por Shi-Qi Wang e colegas na revista Science, trata da descrição de um recém-descoberto fóssil na família da girafa – o Discokeryx xiezhi, que deve ter vivido há cerca de 16 milhões de anos. 

Os autores do trabalho descrevem, utilizando técnicas bem modernas de biomecânica, que o crânio de D. xiezhi possuía uma ornamentação óssea extrema, algo como um verdadeiro capacete (headgear). Utilizando uma análise de elementos finitos (o mesmo tipo de análise utilizada para construir pontes, ou determinar métodos mais seguros para construção de carros observando como deformam durante batidas), eles determinaram que a estrutura dos ossos do pescoço e crânio deste animal fóssil era capaz de aguentar extrema velocidade e até mesmo altos níveis de trauma – de fato, aparenta ser mais resistente a trauma do que qualquer outro crânio conhecido até o momento. 

Os autores concluem que D. xiezhi deveria então utilizar sua cabeça (e pescoço) em batalhas entre machos, de maneira semelhante às girafas modernas. Até este ponto, trata-se de uma descrição do padrão observado, etapa fundamental e importantíssima na ciência.

Os autores então adentram o âmbito da inferência, sugerindo que a resposta para a clássica questão do desenvolvimento do pescoço da girafa seria a seleção sexual (competição entre os machos): machos com capacetes maiores e pescoços mais longos seriam capazes de dar cabeçadas com mais força, e vencer machos menores na competição por fêmeas.

Adicionalmente, os autores analisaram a composição isotópica dos dentes destes fósseis, e concluíram que eram capazes de se alimentar de uma diversidade maior de folhas, presumivelmente porque, com pescoços mais longos, seriam capazes de alcançar alimento onde outros animais não conseguiam – este tipo de fenômeno evolutivo é denominado "exaptação", ou seja, uma vantagem adaptativa que aparece como efeito colateral da resposta a uma pressão seletiva mais imediata.

A esta estrutura de raciocínio científico chamamos de "indutivo". Fenômenos naturais são descritos (a caracterização do fóssil), e a partir do conhecimento prévio (comportamento das girafas modernas) os autores inferem uma conclusão sobre a verdade do processo evolutivo (o pescoço longo da girafa é resultado de seleção sexual). 

A ciência moderna tende, no entanto, a basear-se no método hipotético-dedutivo, no qual hipóteses falseáveis são criadas e testadas empiricamente. Um segundo artigo recente, de autoria de Wada-Katsumata e colegas, publicado em Communications Biology, tratando de seleção sexual em baratas domésticas, nos permite analisar esta segunda estrutura de pensamento.

Em uma espécie de barata doméstica, a Blatella germanica, originalmente europeia, mas atualmente cosmopolita, ocorre o fenômeno da "escolha da fêmea". De maneira resumida, durante uma espécie de "corte" ou "dança" que ocorre antes do acasalamento, o macho oferece à fêmea uma secreção açucarada. Estudos anteriores demonstram que a fêmea neste momento pode decidir acasalar ou não, baseada na qualidade da secreção – a lógica é que quanto mais açucarada, maior a indicação de que o macho é capaz de obter recursos (açúcares são um recurso energético bastante importante). As fêmeas utilizam uma série de receptores gustativos especializados para fazer esta análise. 

No entanto, em se tratando de uma peste urbana, os seres humanos entram na jogada, e de maneira muito importante. Iscas pesticidas para baratas comumente usam o mesmo princípio: são iscas açucaradas, porém "batizadas" com veneno. Desta maneira, existe uma pressão seletiva contrária: baratas que não são atraídas por açúcar (um fenótipo denominado de "aversão à glicose") têm uma vantagem seletiva (não irão comer pesticida). Mas isso deve interferir no processo de acasalamento, que é baseado justamente em preferência por glicose. Estes pesquisadores, portanto, constroem uma questão sobre o fenômeno:

 

Será que a aversão à glicose interfere no sistema de seleção de parceiro sexual baseado em gustação?

 

Esta pergunta é falseável, e as respostas possíveis podem ser formalmente descritas com duas hipóteses:

 

Hipótese nula: o sistema de seleção sexual baseado em gustação não é perturbado pela aversão à glicose;

Hipótese alternativa: o sistema baseado em gustação é perturbado pela aversão à glicose.

 

A hipótese nula é sempre a mais simples, a que exige que menos eventos aconteçam – é o princípio da parcimônia. Os cientistas então produziram experimentos em que testaram o sucesso de acasalamento entre machos e fêmeas que têm e que não têm aversão à glicose (este último grupo, chamado de "selvagem"). Em suma, fêmeas com aversão à glicose não gostam de acasalar com machos selvagens (sem aversão à glicose), porém machos que também têm aversão à glicose desenvolveram métodos alternativos para a corte nupcial. O principal é que eles oferecem a substância açucarada, porém em pequena quantidade e por pouco tempo, para não dar oportunidade para que a aversão ocorra. 

Desta maneira, fêmeas com aversão à glicose tendem a acasalar mais com machos do mesmo tipo, alavancando então o processo de seleção natural – que já está ocorrendo, pois machos e fêmeas que não têm aversão à glicose estão morrendo, por comer veneno…

Vemos aqui então que os experimentos com baratas nos ajudam a entender algo novo sobre o processo evolutivo. Entendemos que, apesar de terem um sistema sexual que poderia ser fortemente afetado pela pressão seletiva imposta por iscas açucaradas, as baratas estão encontrando uma saída e devem continuar empesteando nossas casas – e evitando nossas iscas. 

As girafas, por outro lado, continuam trazendo confusão para a mesa da discussão evolutiva. Inferir que os pescoços das girafas foram fruto de seleção natural simples, ou de seleção sexual, depende de testar esta hipótese contra a hipótese de que estes pescoços longos simplesmente apareceram sem nenhuma razão, apenas por chance – esta seria a hipótese mais simples, a hipótese nula. 

Da maneira em que a hipótese foi formulada por Wang e colegas, é intestável – uma situação que os especialistas referem como "cenário evolutivo". Outras expressões que definem igualmente bem este tipo de hipótese seriam "anedota", ou "história da carochinha".

 

Daniel J. G. Lahr, PhD, é professor associado no IB-USP, e atua na área de microbiologia evolutiva

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