Nas histórias de super-heróis, as máscaras são uma importante ferramenta usada por muitos personagens para preservar sua identidade e se proteger de retaliações, enquanto lutam pelo bem-estar coletivo. Na pandemia de COVID-19 acontece algo parecido, mas de forma inversa: o uso coletivo das máscaras vem se mostrando cada vez mais uma estratégia fundamental para a proteção e bem-estar de cada indivíduo na luta contra o coronavírus.
Objeto de questionamentos quanto à sua segurança e adequação para uso generalizado no início da pandemia – a Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras autoridades sanitárias hesitaram, de início, em recomendá-las, também por temor de desabastecimento de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde na linha de frente de combate aos SARS-CoV-2 -, as máscaras, em especial as caseiras, logo se tornaram um item essencial, e muitas vezes obrigatório, para quem quer se aventurar fora de casa nestes tempos.
Apesar de obrigatórias ou recomendadas em espaços públicos e outras situações, desde fins de março, por força de regulamentações de governos locais ou nacionais ao redor do mundo, as máscaras ainda são alvo de muitas dúvidas sobre sua real eficácia e erros de utilização. Mas a ciência também já produziu muito conhecimento sobre elas neste período, demonstrando que, se bem feitas e usadas, as máscaras são, lado a lado com a higiene pessoal e o distanciamento social, as principais estratégias para ajudar a conter a disseminação do vírus. E assim devem permanecer por muito tempo, mesmo após a chegada de uma ou mais eventuais vacinas contra a doença. Vejamos então o que algumas destas pesquisas e os especialistas dizem (spoiler: usar máscara com o nariz de fora, no queixo ou no pescoço é o mesmo, ou até pior, que estar sem máscara!):
Materiais e modelos
Logo de cara, uma questão que as pessoas têm é “qual a melhor máscara para me proteger da COVID-19?”. De início, muitas instintivamente se voltaram para produtos aprovados para uso médico-hospitalar, como os respiradores no padrão americano N95 ou máscaras cirúrgicas, numa corrida que as fez sumir não só das prateleiras das farmácias e lojas especializadas, como dos dispensários dos hospitais e clínicas, e provocou uma explosão nos preços. Mas muitas vezes nem uma nem outra são a melhor opção, tanto do ponto de vista da saúde pessoal quanto da coletiva.
No caso dos respiradores N95, é preciso estar atento a que tipo de produto se está lidando. Criado pelo Instituto Nacional para Segurança e Saúde Ocupacional dos EUA (NIOSH, na sigla em inglês), o padrão deve seu nome à filtragem de 95% das partículas com menos de 0,3 micrômetros (um micrômetro equivale a um milésimo de milímetro) presentes no ar quando o usuário inspira, mas nada prevê quanto ao material que ele lança ao ambiente quanto expira. Assim, para que também evite a disseminação do coronavírus, não basta que a máscara seja classificada como “N95”. Ela também deve ser uma chamada “N95 cirúrgica”, sem válvulas ou ventilações que permitam que o ar da exalação escape sem barreiras.
Já as máscaras cirúrgicas “comuns” não se prestam muito bem nem para a proteção individual nem para a coletiva. Produzidas e usadas primariamente para evitar o contato direto dos profissionais de saúde com sangue, fluidos ou outras secreções dos pacientes, elas não necessariamente bloqueiam e impedem que material particulado fino, como gotículas ou aerossóis, cheguem à boca e nariz do usuário. Seu ajuste “frouxo” nas laterais do rosto também não cria uma barreira efetiva para a entrada e saída de contaminantes.
Assim, e também para evitar que o suprimento de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde na linha de frente de combate à pandemia se torne escasso, o público em geral deve recorrer às máscaras “caseiras”. E estas, por sua vez, devem ser feitas com materiais – como panos de algodão ou outros tecidos naturais ou sintéticos - e formatos adequados, tanto para reduzir o risco de infecção pelo novo coronavírus quanto sua disseminação, bem como para serem confortáveis. Uma máscara que machuca ou incomoda representa um desincentivo ao uso.
Camadas de proteção
Com o recrudescimento da pandemia de COVID-19, cientistas de todo o mundo começaram a investigar a capacidade das máscaras em proteger contra o SARS-CoV-2 e/ou evitar sua disseminação, além de revisar estudos anteriores envolvendo seu uso contra doenças semelhantes e/ou propagadas por via aérea, gotículas ou aerossóis, como SARS e MERS, também provocadas por coronavírus;, gripe (influenza) e tuberculose. Estas pesquisas, revisões e metanálises foram praticamente unânimes em mostrar que as máscaras caseiras, embora imperfeitas, ajudam a impedir tanto a contaminação dos usuários quanto dos ambientes.
Uma das dúvidas mais comuns com relação às máscaras caseiras é de que tecido devem ser feitas. De acordo com levantamento feito por pesquisadores canadenses com base em 25 diferentes estudos, malhas de algodão com uma densidade de pelo menos cem fios por polegada, flanela, mesclas de algodão e poliéster com ao menos 90 fios por polegada, tecidos para fazer panos de prato e de camisetas de algodão de boa qualidade.
De acordo com os pesquisadores, apesar das tramas destes tecidos terem vãos bem superiores ao tamanho do coronavírus – os "furos" das tramas têm de cinco a 200 micrômetros de diâmetro, contra cerca de 0,1 micrômetro do micro-organismo -, diversos outros fatores fazem com que sejam razoavelmente eficazes na sua contenção tanto “de fora para dentro” quanto “de dentro para fora”.
Isto porque o SARS-CoV-2 não “viaja” sozinho. Quando respiramos, falamos, comemos, tossimos, espirramos, cantamos ou gritamos, lançamos ao ar partículas de diferentes tamanhos, algumas maiores e outras menores, que carregam o coronavírus. E geralmente estas gotículas ou aerossóis são bem maiores que os espaços nas tramas.
Além disso, em escala microscópica, os fios dos tecidos não são perfeitamente lisos. Os vãos da trama assemelham-se a túneis, de cujas "paredes" projetam-se filamentos que, vez em quando, “agarram” gotículas e aerossóis que estejam passando. Por fim, as máscaras caseiras podem, e devem, ser feitas de mais de uma camada de tecido, adicionando múltiplas barreiras adjacentes e aumentando as chances do espaço na trama de uma camada coincidir com o fio na outra, por exemplo.
Assim, mesmo as máscaras caseiras bloqueiam a maior parte das partículas qm que o vírus viaja. Estudos realizados ao longo dos últimos meses apontam que as máscaras podem reduzir em mais de 80% o risco de infecção pelo SARS-CoV-2 quando comparado ao não uso de máscaras, e em alguns casos barram em até 97% as partículas finas presentes no ar, em linha com o desempenho dos equipamentos de proteção profissionais. Isso sem contar outros potenciais “benefícios indiretos”, com pesquisas indicando que a gravidade do quadro de COVID-19 também pode estar relacionada à carga viral inicial que o doente foi exposto, potencialmente reduzida tanto na emissão pelos infectados quanto na contaminação pelos suscetíveis, com o uso apropriado das máscaras.
Usar errado é como não usar
Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que as máscaras sejam usadas corretamente. De acordo com as diretrizes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) e outras autoridades sanitárias, elas devem cobrir completamente boca e nariz, ficando presas no queixo e justas e fechadas nos lados.
Andando nas ruas, porém, não é difícil ver pessoas usando máscaras “parcialmente”, cobrindo apenas a boca e deixando seus narizes de fora, ou mesmo penduradas no queixo e no pescoço. Tais atitudes derrubam completamente seu propósito, e podem ser piores que estar sem máscara.
Quanto à proteção individual, por exemplo, estudos indicam que o nariz é a principal via de entrada do SARS-CoV-2 no organismo. Com a máscara abaixada, ele fica exposto justo sobre tecido que vem acumulando gotículas potencialmente contaminadas a cada respiração. Além disso, ricas em uma proteína chamada enzima conversora da angiotensina 2 (ACE 2, na sigla em inglês), que atua como um receptor do SARS-CoV-2, células nasais acabam se tornando um importante foco de infecção para que o vírus se espalhe pelo resto do corpo.
Mas o maior “vilão” do mau uso das máscaras é jogar por terra o que é talvez seu maior poder, caseiras ou não, na luta contra o SARS-CoV-2: a prevenção da propagação, via a diminuição do alcance e da quantidade de gotículas e aerossóis contendo o vírus que os infectados lançam no ambiente. Estudos indicam que 40% a 45% das pessoas infectadas com vírus não apresentam qualquer sintoma, mas ainda assim o transmitem, e que estes indivíduos assintomáticos são responsáveis por mais da metade dos eventos de transmissão em surtos de COVID-19. Diante disso, as máscaras formam uma barreira sanitária, se não perfeita, ao menos eficaz em torno destes chamados “superdisseminadores” dificilmente identificáveis preventivamente.
Pressão e significado social
Neste ponto entra um último requisito para deslanchar os “superpoderes” das máscaras na luta contra a COVID-19. Como acontece com as vacinas, seu impacto na pandemia depende de uma ampla adesão à estratégia pela população, de forma a interromper as cadeias de transmissão. Quanto mais pessoas usando máscaras adequadas corretamente, maior a proteção coletiva que elas conferem.
E essa proteção não é pequena nem desprezível, mostram as pesquisas. Em uma delas, cientistas calcularam que a imposição de regulamentações exigindo o uso de máscaras em espaços públicos em 15 estados dos EUA e na capital Washington, no início de abril, evitou mais de 200 mil novos casos da doença no país, apenas até 22 de maio. Já recente estudo com simulações da evolução da pandemia nos EUA nos próximos meses, publicado na revista Nature Medicine, sugere que, mantidas as atuais regras de distanciamento social, o uso universal de máscaras (por 95% ou mais das pessoas em espaços públicos) poderia evitar quase 130 mil mortes adicionais, entre 22 de setembro passado e 28 de fevereiro do ano que vem no país.
Mas, assim como enfrentamos os infames movimentos antivacina, agora vemos crescer uma resistência antimáscaras. Em alguns casos, a desculpa é o “incômodo” causado por elas, muitas vezes justificado por temores sem embasamento científico, como, por exemplo, de que promoveriam um suposto “acúmulo de dióxido de carbono” (CO2) da respiração que prejudicaria a oxigenação do sangue, mito que segue sendo evocado apesar dos inúmeros vídeos de médicos e outros profissionais de saúde colocando múltiplas máscaras enquanto monitorados por um oxímetro, sem apresentar qualquer alteração nas medições.
Muitas vezes, no entanto, o discurso antimáscaras ecoa o mesmo argumento equivocado de defesa da liberdade individual, que ignora a primazia do interesse coletivo e da saúde pública, principalmente no contexto de uma pandemia que já matou quase 1,2 milhão de pessoas em todo mundo até esta quarta-feira, 28 de outubro, perto de 160 mil delas no Brasil. Nesta seara negacionista, vemos a politização das máscaras, classificadas por alguns como “focinheiras ideológicas” e outras expressões típicas do pensamento conspiracionista, que chega a uma busca ativa para burlar as regulamentações que obrigam seu uso em diversas situações, como atestados médicos para condições inexistentes, por exemplo.
Mas a resistência às máscaras também tem fortes componentes psicológicos, que podem ser aliviados via um realinhamento de seu significado social. Atualmente, muitas pessoas ainda veem as máscaras como um sinal de que o usuário está doente, ou que é frágil, covarde. Assim, não é por acaso que líderes políticos populistas como o presidente americano Donald Trump ou o brasileiro Jair Bolsonaro, para os quais é fundamental manter uma imagem de força, insistentemente recusam-se a usá-las ou usam-nas a contragosto, em demonstrações públicas que reforçam a resistência antimáscaras entre seus partidários e atrapalham a comunicação e convencimento sobre a importância de seu uso para a população em geral.
Diante disso, se faz necessário um esforço de ressignificação geral do uso de máscaras, e de pressão direta ou indireta por adesão à estratégia, seja por incentivos ou subsídios para engajamento ou penalização social dos "rebeldes". Menos que um sinal de fraqueza, elas devem passar a ser vistas como uma demonstração de força e convicção, uma decisão inteligente, baseada em evidências científicas, que serve tanto como precaução pessoal quanto uma preocupação com o outro e a saúde coletiva. Um ato de responsabilidade social, porque é sob as máscaras que estão os verdadeiros heróis da luta contra a pandemia de COVID-19.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência