Estudo com Nitazoxanida do MCTIC não faz sentido

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20 out 2020
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Em 17 de abril de 2020, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Marcos Pontes, anunciava o início de testes de reposicionamento de uma medicação, a nitazoxanida (NTZ), para o tratamento de COVID-19. Segundo o ministro, a medicação tinha 94% de eficácia nos testes in vitro. Guarde as datas! Dada a observação de que a população havia corrido às farmácias para estocar hidroxicloroquina, o ministério teve a preocupação de solicitar à ANVISA, em 15 de abril, que incluísse a medicação do estudo na lista de controlados antes de fazer o anúncio.

A primeira etapa do estudo contou com 50 pacientes: 25 receberam a NTZ e outros 25 receberam placebo (registro NCT04348409). O protocolo do estudo, intitulado “Efficacy and Safety of Nitazoxanide for the Treatment of Hospitalized Patients With Moderate COVID-19” tem sérios problemas. Em primeiro lugar, o estudo não é dimensionado para avaliar eficácia de intervenção. Vinte e cinco pacientes por grupo compõe uma amostra adequada para estudos de fase I, com vistas a testar segurança, e nada mais.

O segundo problema observado no protocolo é que o desfecho primário medido é carga viral. Carga viral é um tipo de desfecho que consideramos, normalmente, como intermediário ou substituto. É um resultado sem grande significado médico, dado que esta informação – quanto de vírus há nas amostras recolhidas – não altera a conduta clínica, nem se relaciona diretamente com o quadro do paciente.

Cabe a pergunta: por que razão escolher carga viral, uma informação de baixo valor clínico, como desfecho primário, o dado mais importante a ser averiguado no estudo? A resposta é uma questão de estatística. O poder estatístico de um estudo ou, dito de outra forma, nossa capacidade de acertar quando afirmamos que algo funciona, guarda relação direta com o tamanho da amostra. Para termos poder, precisamos de muitos pacientes. Desfechos primários clinicamente relevantes como mortalidade, por exemplo, não são medidos em escala, não há continuidade numérica, ou o indivíduo está vivo ou morto num dado tempo (0 ou 1).

Contudo, há um artifício para fazer estudos com pequeno tamanho amostral alcançar poder estatístico. Basta usar um desfecho substituto, um de intervalo contínuo, como o resultado de um exame. Por exemplo, carga viral é uma informação que pode assumir muitos valores num intervalo. Esse tipo de dado pode inflar o poder estatístico de estudos fracos. Isso explica porque o estudo manteve um desfecho substituto como primário, e aquilo que seria clinicamente relevante como secundário.

Em 9 de junho, o ministro anunciava que havia dado início à segunda fase do estudo. Com mais pacientes, a ideia é que fosse um estudo conclusivo sobre a eficácia da NTZ para o tratamento de COVID-19. No entanto, os mesmos erros cometidos durante a fase I foram propagados para a fase II.

Antes de analisarmos o protocolo da fase II, algo importante precisa ser dito. As normas de boas práticas para execução de estudos clínicos mandam que, antes de efetivamente iniciar qualquer estudo, o seu protocolo deve ser publicado. Embora não seja uma garantia de qualidade, essa prática permite que depositemos alguma confiança na integridade do estudo: a publicação prévia impede que o protocolo seja “cozinhado” à medida que os dados aparecem.

Ter isso em mente é importante porque o primeiro registro da fase II do estudo, iniciada no dia 8 de junho, só foi realizado mais de um mês depois, em 27 de julho (registro RBR-4nr86m). O segundo registro, agora na base de dados internacional clinicaltrials (registro NCT04552483) só foi realizado em 17 de setembro.

Uma das vantagens de se publicar um protocolo na base de dados clinicaltrials.gov é que ela fornece os registros de todas as alterações realizadas no protocolo. Isso permite que possamos ver se o grupo alterou o protocolo durante o estudo, o que introduziria vieses críticos e, consequentemente, reduziria a confiança nos resultados. Como o protocolo do estudo do ministério só foi submetido no final para a base de dados, é simplesmente impossível saber que alterações foram feitas durante o processo. Passa uma falsa segurança de que o protocolo nunca sofreu alteração.

Agora que consideramos o problema do registro, podemos passar ao protocolo em si. No segundo estudo, temos 392 participantes, com 196 indivíduos recebendo NTZ por 5 dias e outros 196 indivíduos recebendo o placebo. A escolha dos desfechos é ainda mais precária do que aquela do primeiro estudo. O desfecho primário passou a ser algo completamente insignificante, um composto de redução da duração de febre, tosse e fadiga. Em síntese, redução de um estado de mal-estar, medida em 8 dias.

Como sabemos que a maior parte das pessoas infectadas irá desenvolver uma forma leve a moderada da doença, é esperado que esse mal-estar esteja presente por algum tempo, sem que ocorra nenhum agravamento. Isso invalida completamente o raciocínio de que essa é uma intervenção precoce para proteger um paciente de uma eventual complicação.

O estudo deveria ter seguido por mais tempo, acompanhando os pacientes por um período longo o suficiente para que aparecessem eventuais agravamentos, e aí comparar os grupos tratado e placebo. Só assim poderia concluir que a intervenção precoce reduz a progressão da doença. Sem essa informação crucial, o teste simplesmente não faz sentido.

Alison Chaves é PhD em Microbiologia e Imunologia pela Unifesp

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