Prece não é tratamento médico, para COVID-19 ou qualquer outra coisa

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17 mai 2020
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mjolnir

É claro que seria querer demais da natureza humana achar que ninguém usaria a COVID-19 para tentar, pela milionésima vez, “provar” objetivamente que orações — preces, rezas, súplicas— fazem bem para a saúde (eventuais benefícios subjetivos são outra conversa, claro). Sob o registro de número NCT04361838, é possível encontrar, no site ClinicalTrials.Gov, o projeto de estudo “COVID-19 ICU PRAYER”, onde ICU é a sigla em inglês para UTI, Unidade de Terapia Intensiva. O resumo do projeto explica:

“Este é um estudo multicêntrico, randomizado e duplo-cego, investigando o papel de preces remotas intercessórias nos desfechos clínicos de pacientes de COVID-19 em unidades de terapia intensiva. Todos os pacientes inscritos serão randomizados para o uso de prece ou sem prece, numa proporção 1:1. Cada paciente randomizado para o braço-prece receberá uma oração ‘universal’ oferecida por cinco denominações religiosas (cristianismo, hinduísmo, islã, judaísmo e budismo), além do tratamento padrão”. 

Os autores esperam inscrever mil voluntários. O desfecho principal a ser medido é mortalidade. Em outras palavras, os autores do estudo querem ver em qual grupo morre menos gente, se entre os “com-prece” ou os “sem-prece”. Há ainda alguns desfechos secundários, relacionados a tempos de permanência na UTI, tempo de permanência em respirador, tempo de uso de medicação para aumentar pressão arterial e condições gerais de saúde.

Meus quase 30 anos de trabalho com pseudociência e ciência marota me dizem que esses desfechos secundários serão usados como fator “veja bem” caso o desfecho primário seja negativo para “eficácia” da prece. Cada desfecho medido é como um bilhete de loteria: meça um número grande o suficiente deles, e é quase certeza que algum saia sorteado.

Ter essa válvula de escape pode ser importante. Em 2006, o American Heart Journal publicou os resultados do estudo STEP, considerado pelo New York Times “a investigação mais rigorosamente científica sobre se preces podem curar”. O trabalho envolveu pesquisadores de seis centros de estudos, avaliando 1.802 pacientes. Teve entre seus autores um padre católico, dois pastores batistas e cerca de uma dezena de médicos.

No STEP, pessoas submetidas a cirurgias coronárias foram divididas, de forma aleatória, em três grupos: 604 pacientes receberam orações depois de serem informados de que poderiam ou não ser alvo de preces; 597 não receberam orações, depois de ouvirem a mesma informação; enquanto outros 601 foram avisados de que seriam alvo de oração, e receberam as preces.

O resultado final revelou que, entre os pacientes que não sabiam se receberiam ou não preces, a taxa de complicações foi praticamente idêntica. Já no grupo de pacientes que tinha certeza de que era alvo de oração, a taxa complicações foi significativamente maior: 59% deles sofreram dificuldades após a cirurgia.

O cardiologista Charles Bethea, um dos coautores do estudo, especulou que o fato de os pacientes saberem que seriam alvo de orações pode tê-los deixado mais nervosos.

 

História

“Prece intercessória”, no contexto desse tipo de estudo, é a prática em que uma pessoa (ou grupo de pessoas) reza pela saúde de terceiros. A maior parte dos estudos sobre o assunto pressupõe preces cristãs ou ecumênicas, embora exista pelo menos um dedicado à prece islâmica. O islã, assim como o cristianismo, tem uma tradição de preces pelo restabelecimento dos doentes.

 No contexto do cristianismo, orações intercessórias são recomendadas, de forma direta, na Primeira Carta a Timóteo, documento do Novo Testamento cuja autoria é, tradicionalmente, atribuída a Paulo de Tarso (que morreu por volta de 65 EC): “Antes de tudo, peço que façam súplicas, orações, intercessões, ações de graças, por todas as pessoas” (1-Tim2:1). O Papa Francisco havia pedido que o dia 14 de maio fosse dedicado a orações pelo fim da pandemia.

O “Oxford Dictionary of the Christian Church” reconhece que a ideia de rezar para pedir coisas à divindade traz complicações de caráter filosófico. Afinal, em tese, “Deus sabe do que os homens precisam melhor do que os próprios homens”, logo rezar pedindo coisas parece, à primeira vista, inútil ou, pior, presunçoso.

Há diversas linhas de pensamento a respeito deste aparente paradoxo: segundo Tomás de Aquino, por exemplo, as pessoas não rezam para influenciar Deus, mas porque Deus quer que rezem. Enfim, não está claro se alguma dessas explicações seria passível de modelagem estatística.

De qualquer forma, a primeira tentativa científica de avaliar o poder da prece foi empreendida pelo britânico Francis Galton (1822-1911), um pioneiro do uso de métodos estatísticos para análise de dados. Em seu artigo Statistical Inquiries into the Efficacy of Prayer (“Investigações Estatísticas da Eficácia da Prece”), ele oferece uma série de sugestões sobre como validar a ideia de que orações são úteis.

No trecho mais famoso do tratado, Galton compara a longevidade de membros de famílias reais europeias com a de outros grupos de pessoas ricas. Era preciso manter a comparação restrita aos ricos para controlar outras variáveis – por exemplo, o acesso ao atendimento médico de qualidade. Galton também só levou em conta as mortes naturais, excluindo da estatística os casos de acidente e de violência.

Por que a famílias reais? Porque, nas monarquias em que não há separação formal entre Igreja e Estado, a população reza pela saúde do rei na maioria dos serviços religiosos. Explica Galton: “A prece pública pelo soberano de cada Estado, protestante ou católico, é e tem sido no espírito da nossa, ‘Dê-lhe saúde e vida longa’”.

Estatisticamente, então, essa prece, erguendo-se aos céus a partir de praticamente todas as igrejas e catedrais da Europa no século 19, funcionava? Não. A idade média em que a morte alcançava os homens de famílias reais, no período de interesse, era de 64,04 anos, de fato a menor entre todas as classes afluentes. O grupo mais longevo era o dos proprietários rurais (70,22 anos).

 

Retórica

É difícil não enxergar estudos que buscam auferir resultados mensuráveis de práticas religiosas como ferramentas de retórica: se as investigações trazem resultados favoráveis ao suposto “poder da prece”, são apontadas como indício de que “tem alguma coisa aí”; se os resultados voltam negativos, os trabalhos são desconsiderados, ou como gestos inúteis de positivismo ingênuo, “má religião e má ciência”, ou como mais uma prova de que as forças que regem o Universo operam de modo misterioso e inescrutável.

Considerações teológicas à parte, essa situação de dois pesos e duas medidas — par eu ganho, ímpar ninguém perde — torna preces e orações objetos eminentemente inadequados para investigação científica honesta: uma tese que só aceita provas favoráveis e descarta ou desqualifica a evidência contrária não cabe na ciência.

Uma revisão sistemática de estudos sobre o assunto, publicada em 2009, faz uma ponderação semelhante. Os autores concluem que “preces intercessórias não trazem benefícios ou malefícios significativos para os doentes”, e apontam que recursos para a realização de testes controlados, duplo-cegos e randomizados são escassos e seriam melhor investidos no estudo de outros tipos de intervenção. Os autores do trabalho proposto sobre prece e COVID-19 ignoraram não só essa recomendação, como tudo que diz a revisão sistemática.

Se pesquisar os efeitos de orações sobre agentes infecciosos, como vírus, é uma excentricidade, no campo da saúde mental, e do “bem-estar” genérico, a questão encontra-se mais próxima do mainstream.

Existe uma operosa indústria de trabalhos acadêmicos dedicada a demonstrar que religião e “espiritualidade”, entendidas num sentido amplo — às vezes, amplo o bastante para incluir coisas como gostar de assistir ao pôr do sol ou curtir bebês sorridentes — fazem “bem à saúde”. O número de núcleos, departamentos e programas dedicados a promover (desculpe, “investigar”) a ideia de que religião (e “espiritualidade”, lato sensu) produz bem estar talvez só não seja maior que o de cursos de MBA.

Muitos dos estudos publicados por esses grupos sofrem com fatores de confusão e com a dificuldade de distinguir causa de efeito (as pessoas que vão à igreja são mais saudáveis, em média, do que as que não vão — mas o grupo das “que não vão” inclui as que estão em casa doentes, hospitalizadas etc). Há ainda trabalhos que não veem benefício, ou que atribuem boa pate do benefício a fatores sociais.

A maior parte dos estudos de roupagem científica que buscam apontar vantagens concretas e objetivas na prática religiosa soa como versões seculares, mal disfarçadas, da velha Aposta de Pascal.

Proposto pelo matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), o argumento sugere que seguir uma fé é sempre benéfico, ainda que a fé esteja, por acaso, errada. Pascal analisou a ideia em termos místicos — para ele, a promessa de uma recompensa na Eternidade, mesmo se acabar se mostrando falsa, merece ser levada a sério —, mas hoje há quem abuse da ciência para escorar o mesmo raciocínio em termos bem mais mundanos.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência. É coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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