A opinião é do epidemiologista brasileiro Eduardo Franco, diretor de Epidemiologia do Câncer do McGill Cancer Research Centre, no Canadá. Para ele, o programa de imunização do vírus HPV evoluiu no Brasil, mas há gargalos na estratégia de rastreamento do câncer de colo do útero, o terceiro mais comum entre as brasileiras
No final dos anos 1980, Franco analisou a distribuição de lesões no colo do útero e sua relação com HPV em São Paulo e Pernambuco, tornando-se um dos pioneiros, ao lado da também pesquisadora brasileira Luísa Lina Villa, em demonstrar que a persistência da infecção pelo vírus HPV era um dos momentos precursores da gênese do câncer de colo de colo do útero. A partir daí ambos foram, respectivamente, ativos no desenvolvimento das vacinas bivalente e quadrivalente, que imunizam contra os dois mais prevalentes HPVs oncogênicos, que são os do tipo 16 e 18.
Nesta entrevista exclusiva à Revista Questão de Ciência, o epidemiologista e diretor do Departamento de Epidemiologia do Câncer do McGill Cancer Research Centre, do Canadá, Eduardo Franco, fala sobre como se construiu a evidência da relação do vírus HPV com câncer de colo do útero, como foram desenvolvidas as vacinas, como ele atuou na difusão da importância da cobertura vacinal no Canadá e quais são, na opinião dele, os melhores caminhos a serem seguidos no Brasil para ampliar a taxa de cobertura com a vacina e como diminuir a prevalência de câncer de colo do útero, também por meio de um método mais eficaz de rastreamento.
Em qual contexto teve início a vacina contra o vírus HPV no mundo?
Eduardo Franco - A vacina é de 2006. Os estudos começaram muito antes disso, claro. As primeiras vacinas, protótipos, foram concebidas nos primeiros cinco anos da década de 1990. Em 1995, houve um momento particularmente crítico de investimento. As duas grandes empresas, a Merck, que tem uma grande especialização em vacinas e a SKB, que foi comprada pela Glaxo e virou a GSK, mais ou menos na mesma época, precisavam tomar a decisão se iriam fazer ou não o programa de desenvolvimento de vacinas. Foi então que, em 1995, a IARC (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer ) caracterizou os HPVs 16 e 18 como sendo oncogênicos. Com essa monografia da IARC, ficou oficial o HPV como causa do câncer, e aí essas duas farmacêuticas tiveram o ímpeto de atuar no desenvolvimento dessas vacinas a partir de 1996. Esses estudos levaram dez anos para terminar e foram publicados em 2004 e 2005 e as vacinas se mostraram eficazes. A partir disso, vieram as políticas regulatórias, começando pela Austrália.
E qual foi a contribuição brasileira?
Eduardo Franco - Eu e a Luísa Lina Villa estivemos entre os líderes no Brasil. Ela atuando no desenvolvimento de uma das vacinas, a da Merck. E eu trabalhei no ensaio clínico da outra vacina, da bivalente, da GSK. Fizemos juntos um dos primeiros estudos, em São Paulo, na Vila Nova Cachoeirinha, com 2500 mulheres. Esse estudo serviu para o cálculo de tamanho de amostra, ou seja, esse estudo feito no Brasil foi fundamental para o estabelecimento de várias premissas básicas para estudos internacionais que se seguiram. Em outro estudo importante que participei, em 1988 com Luísa Lina Villa e Humberto Torloni, avaliamos todos os pares de tipos de câncer por Estado, de acordo com fatores de risco em comum. Ficamos pasmos com o fato de haver a mais forte correlação entre câncer de pênis nos homens e de colo do útero nas mulheres nos mesmos Estados, mostrando que havia um agente em comum, que depois soubemos que era o HPV.
De que forma as descobertas de Harald zur Hausen (Nobel de Medicina em 2008) contribuíram para que o senhor acabasse seguindo essa linha de pesquisa?
Eduardo Franco - Ele foi pioneiro em acreditar no HPV como causa do câncer de colo do útero. Mas há outros fatos dessa época que são pouco conhecidos. Muito do que foi viabilizado foi pelo fato de zur Hausen ter recebido amostras do Brasil e da Colômbia, por exemplo. A investigadora colombiana Nubia Muñoz, na época, queria ver se havia amostras virais em casos de câncer de colo do útero e aí mandou para zur Hausen, que estudava a possível relação com o vírus do herpes. Os resultados foram negativos para herpes e positivos para HPV, e aí Harald zur Hausen passou a se orientar mais para a história do HPV. Foi então que, em 1983, publicou trabalhos importantes com sua equipe, mas ainda havia um ímpeto muito grande de defender um possível papel do vírus do herpes.
Acreditava-se que a causa do câncer de colo do útero era o herpes genital, mas o tempo mostrou que não havia essa relação. Em geral, a contribuição da América Latina se deu por meio do Brasil, Colômbia, México e Costa Rica, tanto com estudos sobre biologia molecular, quando em relação ao desenvolvimento de vacina.
A vacina contra o vírus HPV, por estar relacionada com o tema iniciação da prática sexual, é um tabu para as famílias mais conservadoras. E o senhor enfrentou essa questão no Canadá, com escolas católicas de Alberta, inclusive com proibição imposta pelo bispo. Conte como foi possível reverter essa situação e, mais do que isso, tornar o modelo de vacinação contra o HPV do Canadá um exemplo para outros países?
Eduardo Franco – Eu temia ser antiético ao ser defender meu próprio trabalho, mas a advogada e especialista em ética biomédica, Juliet Guichon da Universidade de Calgary, abriu os meus olhos. Ela batalhou comigo, diante do bispo de Alberta, em defesa da vacinação contra o vírus HPV. O bispo em questão, chamado Frederick Henry, liderava o Comitê Distrital das Escolas Católicas de Calgary, e tinha feito um decreto proibindo as enfermeiras do sistema público de saúde de vacinar as meninas das escolas católicas. Estava aí a explicação para uma cobertura muito baixa, quando comparada com as protestantes. Eu e Juliet protagonizamos uma discussão pública sobre o tema, e o bispo retirou essa ordem. Hoje ele está aposentado.
Embora mais tardios, o Brasil deu importantes passos. A vacina está disponível na saúde pública para meninos e meninas. No entanto, a adesão não é alta e o câncer de colo do útero, por exemplo, é um dos tumores mais prevalentes nas brasileiras, sendo que, em alguns Estados, é mais prevalente que o câncer de mama. Quais medidas deveriam ser tomadas para reverter esse quadro?
Eduardo Franco – Participei recentemente de uma reunião cujo tema foi justamente qual é o papel do Canadá em acelerar a eliminação da incidência global das doenças associadas com HPV. Nesse sentido, nossos olhares estão não só no Brasil, como também onde os problemas são ainda mais graves, como na a África Equatorial. Antes de qualquer coisa, é importante saber que os fatores de risco para câncer de mama e colo do útero são opostos.
Enquanto o câncer de mama tem forte relação com hormônios, sendo mais comum na mulher com menos filhos ou que teve o primeiro filho mais tarde, que postergam o casamento ou nunca se casam, que são universitárias e mais presentes no mercado de trabalho, o câncer de colo do útero, por sua vez, é mais prevalente na mulher de menor renda, com mais filhos, idade da primeira relação sexual mais jovem, que casa mais cedo, enfim, é o perfil de mulher rural, em região dominada pela Igreja Católica, . É uma mulher que foi mais exposta ao vírus HPV nos anos 80 e que está tendo agora o câncer de colo do útero. Entender esse cenário é fundamental para se pensar nas políticas de prevenção.
Em 2011, em congresso realizado no Rio de Janeiro, o senhor argumentou que o combate ao câncer de colo de útero adotado pelo Ministério da Saúde não era adequado. Quais eram essas falhas? O senhor viu alguma evolução nesses últimos sete anos?
Eduardo Franco –O Brasil começou muito tarde a imunização contra o vírus HPV, e eu fui crítico. Ao longo desses sete anos houve uma evolução muito positiva e só não se pode fazer melhor porque o Brasil tem limitações econômicas e uma grande complexidade logística, em razão de seu tamanho territorial. Se aqui no Canadá é difícil, que são 35 milhões de pessoas, sendo a maioria delas em zonas urbanas de fácil acesso, imagina no Brasil. As minhas críticas, hoje, são relacionadas à política de rastreamento.
No Brasil, houve um episódio em que adolescentes relataram terem sofrido paralisia como efeito colateral da vacina contra o HPV. Ficou provado que esse sintoma não teve qualquer conexão com a vacina, e sim com questões emocionais. No entanto, a mídia brasileira noticiou e a segunda dose da vacina não teve a mesma adesão que a primeira. Aliás, ainda não chegou ao patamar de cobertura do lançamento da campanha. O senhor recorda de outras fake news envolvendo vacina contra o vírus HPV ocorrida no Brasil, Canadá ou qualquer outro país?
Eduardo Franco - Existe um ativismo das pessoas antivacina, que plantam fake news sobre toxidades das vacinas. Isso é um problema muito sério. Houve no Brasil um episódio de dor periférica no Acre e foi nas redes sociais e aí gera um efeito psicogênico, de grande alarde.
Como o senhor avalia o cenário da cobertura vacinal contra outros vírus associados com câncer, como a Hepatite B e o câncer de fígado?
Eduardo Franco - Estamos começando a ver uma redução dos casos de câncer de fígado em razão da vacinação contra o vírus da hepatite B. Infelizmente ainda não temos vacina contra o vírus da hepatite C, mas há tratamento. As infecções em geral representam cerca de 15% de todos os casos de câncer, podendo chegar a 25% em países da África Equatorial. Os principais pontos são que o tratamento da bactéria H. pylori também tem um impacto importante na redução de câncer de estômago. É tratado com antibiótico e tem cura. A malária, muito comum na África equatorial, é fator de risco importante em linfoma.
Moura Leite Netto é jornalista, graduado pelo Centro Universitário FIEO e pós-graduado em Comunicação Jornalística pela Faculdade Cásper Líbero. É mestre e doutorando em Ciência pelo A.C.Camargo Cancer Center, onde também atua como Assessor de Imprensa. É diretor do setor Online da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência).