Duas distopias, uma eleição e Sylvester Stallone

Apocalipse Now
26 mar 2022
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Cobra

 

Por uma coincidência cósmica dessas que acontecem de vez em quando, ano passado recebi, de duas casas editoriais diferentes, convites para escrever ensaios que serviram de posfácio para novas traduções de dois clássicos da distopia – “Retorno ao Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, para a Editora Globo, e “1984”, de George Orwell, para a DarkSide. O primeiro é um ensaio longo, o segundo, um romance.

“Retorno” é uma curiosa mistura de reportagem e digressão em que Huxley especula sobre os elementos de seu romance “Admirável Mundo Novo” que já estariam presentes no mundo moderno (“moderno” sendo o ano de publicação do livro, 1958). Já “1984” é, claro, “1984” – a visão do inferno na Terra pela qual todos os infernos terrestres, reais ou imaginários, são e serão medidos.

Para escrever os posfácios reli os livros e, no caso específico de “1984”, muito da obra de não-ficção de Orwell: vários artigos e o relato de sua passagem pela Guerra Civil espanhola, “Homenagem à Catalunha”.

Em seu “Retorno”, Huxley referencia “1984”. Aponta que os dois romances, o seu e o de George Orwell, constroem sociedades intoleráveis que mantêm seus membros na linha usando estratégias diametralmente opostas: o Grande Irmão pune e intimida, o mundo do Soma seduz e recompensa. Sugere que, ao menos nesse aspecto, “Mundo Novo” vinha se mostrando mais profético do que “1984”, dado o caráter totalizante que a sociedade de consumo de massa e a publicidade comercial vinham assumindo.

 

O indefensável e a pasta de dente

Algo que ambos os autores compartilham é uma preocupação com a degeneração da linguagem – mais especificamente, com a perda de rigor argumentativo no debate político. A novilíngua (ou “novofalar”, na tradução de Alexandre Boide) é a caricatura, por exagero, de algo que incomodava muito Orwell no mundo real. Em um de seus artigos, o autor de “1984” lamenta o fato de o discurso político, à direita e à esquerda, ter se reduzido à fabricação de falácias e eufemismos para defender o indefensável, do uso de armas nucleares ao assassinato de dissidentes pelo Estado. Aqui, um trecho do ensaio “Política e a Língua Inglesa”, de 1946:

“Coisas como a continuidade do domínio britânico sobre a Índia, os expurgos e deportações na Rússia, o lançamento da bomba atômica sobre o Japão, podem ser defendidas, mas apenas por meio de argumentos que são muito brutais para o público encarar, e que contradizem os objetivos proclamados dos partidos políticos”.

Huxley, em “Retorno”, ataca o problema por outro ângulo, o da convergência entre política e publicidade, a escolha de candidatos reduzida ao mesmo tipo de processo mental que rege a escolha de uma marca de pasta de dentes. Citando o livro (na tradução de Fabio Fernandes):

“...a campanha política está pronta para os comunicadores de massa. Tudo o que basta agora é dinheiro e um candidato que pode ser treinado para parecer ‘sincero’. Sob essa nova regra, princípios políticos e planos de ação específica acabaram perdendo muito de sua importância. A personalidade do candidato e a maneira como ele é projetado pelos especialistas em publicidade são as coisas que realmente importam”.

 

E Orwell, de novo:

“A palavra fascismo agora já não significa nada, exceto quando significa ‘algo indesejável’. As palavras democracia, socialismo, liberdade, patriótico, realista, justiça, têm cada uma diversos significados diferentes e irreconciliáveis entre si. No caso de uma palavra como democracia, não só falta uma definição consensual, como qualquer tentativa de estabelecê-la sofre resistências de todos os lados. É um sentimento quase universal que chamar um país de democrático representa um elogio: em consequência, os defensores de todos os tipos de regime alegam que se trata de uma democracia, e têm medo de precisar abandonar a palavra se ela estiver presa a um sentido único”.

 

Huxley propunha como solução uma “educação para a liberdade” que preparasse as pessoas para tratar mensagens apelativas e desonestas com o devido desprezo. Já Orwell propunha uma mudança nos hábitos – de pensamento e discurso – dos envolvidos no debate público, e um esforço para jogar o “refugo verbal” na “lata de lixo”.

 

Eleições 2022

É doloroso ler esses alertas, feitos em 1946 e 1958, em meio ao clima pré-eleitoral deste 2022. A facilidade com que a espécie humana entra em armadilhas perfeitamente bem sinalizadas, demarcadas com faixas, cartazes, alarmes ensurdecedores e luzes estroboscópicas é talvez o maior desafio ao lugar-comum que proclama o Homo sapiens um “animal racional”.

O problema apontado pelos autores é universal, mas se manifesta de forma especialmente aguda em ciclos eleitorais, como o que o Brasil enfrenta neste ano. O uso da linguagem política para, nas palavras de Orwell, “fazer com que mentiras pareçam plausíveis e assassinato, respeitável”, entra em marcha acelerada, bem como a redução do que deveria ser um debate substantivo ao equivalente publicitário de uma guerra entre franquias de hambúrguer.

Esse último ponto assume proporções trágicas no caso brasileiro, onde existe uma diferença extremamente substantiva entre o candidato à reeleição e praticamente qualquer um que se oponha a ele.

A sustentação do delírio solipsista de que o pleito presidencial deste ano é apenas mais uma instância de politics as usual – onde as únicas questões realmente palpáveis em jogo seriam, como vinham sendo ao longo da Nova República, a distribuição de cargos entre cabos eleitorais e das benesses do capitalismo de compadrio entre financiadores de campanha – é um dos aspectos mais perversos da cobertura jornalística, esta sim, as usual, da movimentação pré-campanha. O que estará em jogo será a própria sobrevivência da democracia brasileira, que dependendo do resultado das urnas correrá o risco de ver completa sua metamorfose em regime de fachada ou, até, de “rasgar a fantasia” de vez.

Parte da apatia se explica pelo fenômeno descrito por Orwell em “Política e a Língua Inglesa”, o uso abusivo de clichês, hipérboles (quando se ataca o adversário) e eufemismos (quando se responde a críticas) no discurso político de tempos normais: num “efeito Pedro e lobo”, depois de décadas de gritaria tentando convencer as pessoas de que cada eleição é uma emergência, quando surge uma que realmente é, talvez as pessoas não estejam mais prestando atenção.

 

Intolerável

Se uma reinvenção da linguagem política – ou, no mínimo, uma reeducação do público e dos políticos sobre os modos de usá-la – é, como Orwell e Huxley parecem ter sugerido, condição necessária para nos salvar da distopia, talvez já seja tarde demais. O próprio discurso dos pré-candidatos de 2022 revela os mesmos vícios de sempre, que se eram pecadilhos para os quais a maioria podia fazer vistas grossas em tempos normais, agora representam perigo real e imediato.

Como medida emergencial, precisamos de menos tolerância com mentiras e meias-verdades, descontextualizações que falsificam significados e, talvez o principal, menos autoindulgência quando é o “nosso lado” que violenta as regras do debate.

Uma ponderação final. No filme “Cobra”, de 1986, o policial Marion Cobretti, interpretado por Sylvester Stallone, tenta justificar seu desprezo pelos direitos dos criminosos argumentando que “se nós seguirmos essas regras de merda e eles não, nós perdemos”.

Esse “reductio ad Stallonium”, adotado como dogma por gurus de todas as correntes políticas nacionais – na esfera da comunicação e do discurso, mas também em várias outras –, tem parte importante de culpa pelo abismo que nos confronta.  Assim como direitos humanos, as regras do debate honesto e da boa política não são “de merda”, adornos vazios a serem postos de lado por quem “não for otário” e “quiser mesmo ganhar”.

A imprensa terá um papel importante a desempenhar nesse processo, caso consiga se desfazer do sorrisinho cínico que, hoje em dia, passa por “objetividade” e “imparcialidade” na cobertura de atos e declarações de candidatos. Mas para se realizar, a “educação para a liberdade” sonhada por Aldous Huxley vai precisar de todos os que se importam com algo além da conquista do poder “porque sim”. Terá de começar pelos nossos teclados.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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