Diversidade na ciência

Apocalipse Now
13 jun 2020
Autor
latinhas diversas

Diversidade é uma ameaça ao futuro da ciência”. Ou, pelo menos, da síntese orgânica, a parte da ciência dedicada a descobrir e desenvolver meios de fabricar moléculas orgânicas (como as que compõem a maioria dos remédios que tomamos). A alegação, publicada num artigo de opinião de uma das mais respeitadas revistas de Química do mundo, a alemã Angewandte Chemie , no início de junho, provavelmente só não desencadeou uma comoção maior pelo mundo porque a luta contra o desrespeito às minorias estava concentrada no escândalo da morte de George Floyd.

No mundo dos químicos, no entanto, o artigo do professor Thomas Hudlicky caiu, com o perdão do clichê, como uma bomba: no fim da primeira semana do mês, dezesseis dos 44 membros do conselho consultivo do periódico já haviam renunciado a suas posições, em protesto, e o texto não estava mais disponível online.

O artigo de Hudlicky era uma resposta/homenagem a um texto clássico de três décadas atrás, de autoria de Dieter Seebach, intitulado “Organic synthesis — Where now?”, ou “Síntese orgânica — para onde, agora?”, que como o título implica, fazia um apanhado do estado da arte em 1990 e apontava caminhos para o futuro. Hudlicky busca fazer o mesmo, só que do ponto de vista de 2020.

Lendo o artigo inteiro (a revista o removeu de seu site, mas PDFs ainda circulam por e-mail e aplicativos de mensagem), fica a impressão de que o autor é um homem de outra época, que viu o mundo mudar e não gostou nada do resultado. Além da diversidade, ele aponta como ameaças ao futuro da síntese orgânica a perda das competências técnicas necessárias para “fazer as coisas à moda antiga”, como eram antes da disseminação de tecnologias como a espectrometria de massa, por exemplo; e o fato de os alunos não terem mais a mesma veneração quase-religiosa de antigamente pelos mestres, o que impede os mestres de tratar os alunos como mão de obra escrava.

Claro, o texto não usa essas palavras exatas, mas faz uma aproximação assimptótica: “submissão ao mentor é quase inatingível hoje em dia, especialmente num ambiente universitário. Muitos estudantes mostram-se indispostos a se submeter a qualquer nível de trabalho duro exigido pelos professores”.

A sobremesa é um gráfico que mostra quais os fatores que, segundo Hudlicky, impactam o futuro do campo. Alguns desses fatores aparecem ligados à expressão “síntese orgânica” por setas de mão dupla, indicando que causam influências tão benéficas quanto maléficas. Alguns, apenas por setas de influência maléfica (diversidade entre eles). Nenhum, repito, nenhum é brindado com uma seta exclusiva de influência benéfica. O artigo todo é um exercício caricatural de rabugice no mais alto nível.

O mais curioso de tudo é que muito do artigo, incluindo o gráfico e a catilinária contra a diversidade, foi adaptado de um capítulo de um livro sobre Síntese Orgânica de autoria de Thomas Hudlicky e J.W. Reed, publicado pela Wiley em 2007. O fato de o ultraje público estar surgindo só agora sugere que o livro falhou em atrair um grau mínimo de atenção.

 

 

Meritocracia

Existe uma percepção, mais ou menos generalizada, de que toda crítica à promoção ativa da diversidade na ciência parte de gente racista, homofóbica, machista etc., ou se vale de razões que, ainda que indiretamente, validam tais preconceitos. Isso não é verdade. Há questionamentos que se originam na preocupação com valores republicanos, como a impessoalidade e o mérito: se diversidade passa a ser critério de seleção, ao menos em princípio a impessoalidade se quebra, e o mérito é relativizado.

O problema com essa objeção é que, no mundo real, a impessoalidade já está quebrada, e o mérito já é relativizado: nepotismo, por exemplo, é um fato da vida, provavelmente, desde neolítico.

Esses defeitos em relação à situação republicana ideal “de equilíbrio” — em que cada indivíduo recebe as mesmas oportunidades que todos os outros, a recompensa pelo esforço é consistente entre todos, independentemente de raça, cor, inclinações sexuais ou persuasão metafísica, e o mérito é avaliado apenas em dimensões objetivamente relevantes —  pesam de modo desproporcional sobre as minorias. Um dos resultados mais replicados das pesquisas sobre mercado de trabalho é a preferência desproporcional dos recrutadores por currículos de pessoas com nomes sugestivos da etnia “privilegiada” na sociedade em questão, quando as qualificações objetivas são iguais.

Pode-se argumentar que a solução correta não seria criar programas explícitos de promoção da diversidade, e sim corrigir as distorções de fundo, o que faria com que a diversidade acontecesse de forma espontânea, já que a mera implementação dos ideais de impessoalidade e mérito cuidaria disso: a maré alta faz subir todos os barcos, etc. Mas “corrigir as distorções de fundo” representa uma tarefa de séculos, e o enfrentamento de características – tribalismo, nepotismo, favoritismo – que provavelmente estão enraizadas na natureza humana.

É um caso em que as simplificações do modelo meritocrático — que projeta as sociedades ocidentais num mapa republicano, impessoal, com apenas uns poucos desvios pontuais, facilmente superáveis com suor e paciência — fazem com que sua aplicação à realidade seja inadequada.

Simplificações e modelos são úteis e fundamentais. Quase cem anos atrás, o físico Sir Arthur Eddington (1882-1944), escrevendo sobre a estrutura interna das estrelas, dizia que “uma aproximação legítima é mais do que apenas um mal necessário; é o discernimento de que certos fatores — certas complicações do problema — não contribuem, de modo apreciável, para o resultado”.

A questão, aí, é ser capaz de perceber quais as “complicações do problema” que afetam, ou não, o resultado, frente ao aspecto da questão que se pretende tratar. Há um momento em que não vale mais a pena pressupor que as vacas são esféricas.

 

Objetividade

A promoção da diversidade na ciência é quase sempre vista como algo feito em benefício dos grupos sub-representados — e, pelos críticos, em detrimento da ciência. Esta é outra fonte de resistência: em seu artigo, por exemplo, Hudlicky queixa-se de uma suposta “discriminação contra candidatos de mérito”. “Essas questões influenciaram práticas de contratação ao ponto em que a inclusão de um candidato em um dos grupos sociais preferidos pode se sobrepor a suas qualificações”, escreve.

A dicotomia entre qualificação e diversidade é um cavalo de batalha antigo – tão velho, na verdade, que já deveria ter sido mandado para a aposentadoria no pasto. Seu único apoio é evidência anedótica, que os estudos sobre mercado de trabalho citados anteriormente põem em séria dúvida; e de qualquer modo, quando trocamos “qualificação” dos pesquisadores pelo que realmente importa – qualidade da ciência produzida –, o efeito do aumento de diversidade parece ser positivo.

Ainda assim, perdura a percepção de que a ciência estaria sendo usada como “escada” para a resolução de problemas que não são legitimamente dela, comprometendo seus recursos e sua objetividade.

O valor da diversidade para a ciência — o fato de que a atividade científica se beneficia, e muito, de uma força de trabalho mais diversa — passa a ser visível quando pomos de lado alguns modelos ingênuos a respeito do que significa para a ciência ser “objetiva”.

No modelo mais simplificado (e, em geral, extremamente útil), cientistas julgam hipóteses com base nos resultados de observações e experimentos. Esses resultados, chamados “evidência”, são públicos e reprodutíveis: qualquer ser racional, até mesmo um alienígena, deve ser capaz de, de posse da mesma evidência e do mesmo grau de expertise, chegar às mesmas conclusões que a comunidade científica terráquea.

O que esse modelo exclui é: qual a conexão entre evidência e hipótese? Qual o cimento que une dados a conclusões? A primeira resposta seria “lógica”. Mas há pelo menos cem anos que se sabe que, nas ciências empíricas, a lógica dedutiva, do tipo “Se toda lagartixa sobe paredes e Beto é uma lagartixa, Beto sobe paredes”, embora necessária, é também insuficiente: nenhum conjunto de observações e experimentos implica a verdade de uma hipótese, não com o mesmo grau de certeza com que o argumento sobre lagartixas implica que Beto Lagartixa sobe paredes, se for verdade que isso é algo que toda lagartixa faz.

Há várias coisas que vêm socorrer a lógica pura na hora de estabelecer a confiabilidade de uma hipótese científica, incluindo bom-senso, a experiência prévia dos cientistas, resultados bem confirmados de outras áreas da ciência — um conjunto do que podemos chamar de informações de fundo.

Essas informações de fundo têm um componente objetivo, claro; mas também carregam um vetor subjetivo que depende dos gostos, inclinações, intuições individuais e coletivas da comunidade científica, e até do carisma e da habilidade retórica de “grandes nomes da ciência”.

Se a comunidade científica é homogênea, esse vetor subjetivo corre um sério risco de incorporar vieses que distorcem e limitam, em muito, as conclusões que se pode tirar da evidência.  Para ficar num caso emblemático, a suposta “base científica” dos programas de eugenia do início do século 20 é um exemplo do risco que se corre quando dados sobre populações humanas variadas são apurados e analisados por pessoas, todas, comprometidas com a visão de mundo de apenas uma dessas populações.

Diversidade de pontos de vista, de repertórios culturais, é um antídoto: a diversidade, somada à expertise técnica e à ética particular da ciência, aumenta, e não diminui, a objetividade do conhecimento científico.

 

Construção social

Todo o argumento da conexão entre diversidade e objetividade é muito bem construído no livro “Science as Social Knowledge”, da filósofa americana Helen Longino. Partindo do desafio lançado pelos relativistas — dado o peso das subjetividades, presentes nas informações de fundo, para a formação dos consensos científicos, como se pode afirmar que a ciência seja objetiva? — ela chega à resposta: pela diversidade de pontos de vista.

Longino mostra como valorização da multiplicidade de olhares sempre fez parte da estrutura da ciência — na exigência da reprodutibilidade dos experimentos, na importância da revisão pelos pares — e como a preocupação com a diversidade pode ser encarada como mais um desdobramento, na verdade uma reiteração desse princípio.

A autora descreve como o debate entre positivistas (que buscavam dar às ciências uma fundação lógica, objetiva porque eminentemente livre de influências subjetivas), e relativistas (que apontavam que a história da ciência mostra que muitas escolhas feitas por cientistas são subjetivas, e que, portanto, a ciência não poderia ser objetiva) deixa o espectador numa posição insustentável, dividido entre “uma análise lógica que é historicamente insatisfatória, e uma análise histórica que é logicamente insatisfatória”.

A incorporação das subjetividades múltiplas — unidas por um ethos e uma expertise comuns — como fiadoras da objetividade é uma solução de gênio: dado que a imposição de uma camada de viés sobre as evidências é inevitável, podemos, pelo menos, esperar que a somatória de um grande número de vieses divergentes chegará bem mais perto do resultado zero do que seria possível, se todos os vieses puxassem na mesma direção.

Nessa chave, a “construção social” da ciência deixa de ser a vulnerabilidade que seus inimigos tanto gostam de apontar e se transforma em uma de suas grandes forças.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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